quarta-feira, 19 de março de 2014

Estudos sobre a Ordem de Avis. Séculos XII-XV. Maria Cristina A. Cunha. «No entanto, dentro da Ordem de Cister, alguns homens, pacifistas ‘avant la lettre’, se insurgiam contra a criação das Ordens Militares. Um exemplo é Isaac de L'Étoile, abade cisterciense, que, a propósito de Calatrava, condenava…»

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«(…) Os comendadores eram cavaleiros que recebiam o direito de administração de uma vila, lugar ou castelo do senhorio da Ordem com todas as suas rendas e direitos, a que se dá o nome de Comenda. Na Ordem de Santiago, as comendas eram entregues em Capítulo Geral, o que levou Paio Peres a estabelecer em 1249 que só as poderiam perder em reunião idêntica. No entanto, esta determinação foi alterada, no sentido de certas infracções à Regra (não obediência ao mestre e não seguimento deste em guerra, por exemplo) obrigarem à perda da comenda. Em princípio, na Ordem de Calatrava, cada cavaleiro só poderia usufruir dos rendimentos de uma única comenda, a não ser que fosse manifesto que esta era insuficiente para seu sustento. Por morte do comendador, era ao mestre que competia nomear um novo, que a partir desse momento ficava responsável pela manutenção das propriedades dessa circunscrição territorial. Se a comenda tivesse um priorado, o comendador era obrigado a manter o Prior e dar-lhe tudo o necessário. Também era sua competência dispor de um lugar para acolher qualquer membro da Ordem que estivesse de passagem ou viesse visitar as propriedades. Em Calatrava existia ainda a dignidade de Sacristão, cuja função pode ser comparada à do tesoureiro das Catedrais. Designado pelo mestre, o sacristão seria normalmente um freire clérigo que tinha como obrigação guardar as relíquias, o ouro e prata e os ornamentos dedicados ao culto divino. Outros freires clérigos eram escolhidos pelo mestre calatravenho para desempenhar as funções de Priores em Igrejas do senhorio da Ordem. Os Conventos de Calatrava e de Avis conheciam igualmente os cargos de Celeireiro, Ecónomo, Enfermeiro, Mordomo, Vestiário, Escrivão, etc., cujas funções são as que o seu nome naturalmente sugere. É possível que os principais núcleos de Santiago incluíssem também na sua organização estes e outros cargos, mas a documentação conservada é, a este respeito, totalmente omissa.
Cistercienses umas, agostinhas outras, as estruturas das ordens militares tinham mais pontos comuns que diferenças, o que se compreende: todas se regiam por Regras de Ordens religiosas adaptadas a leigos com um tipo de vida próprio. Nascidas ou implantadas num contexto de luta contra o Infiel, no Ultramar ou na Península Ibérica, os reis viram nelas preciosos auxiliares na conquista e manutenção das praças conquistadas. Por essa razão, foram recompensando com doações a sua actividade, sem no entanto lhes deixar de recordar que a sua finalidade (isto é, a sua razão de ser) era servir os interesses régio, então e em tempos futuros. E se, por um lado, e no que toca ao território português, esse desafio terá sido cumprido, por outro os ideais que estiveram na base da fundação das milícias e os costumes rigorosos relacionados com a vida religiosa dos freires desapareceram, alterando-as de tal maneira que dificilmente as podemos identificar com as instituições que, de uma forma genérica, acabámos de descrever.

A Ordem de Avis na Idade Média (contexto histórico)
As Ordens Militares
As ordens militares nascidas na civilização ocidental medieval são, antes de mais, uma resposta encontrada pela Igreja e pela sociedade do século XII para o(s) problema(s) levantado(s) pela guerra contra o Infiel, cuja justificação se procurava dar através de um amplo movimento de paz que, em última análise, se situa na sequência de outras tentativas em séculos anteriores, como a Trégua e a Paz de Deus. É necessário, contudo, distinguir as Ordens que foram fundadas com o objectivo de defesa e protecção de Peregrinos e estabelecimentos a eles destinados, por um lado, e as que visavam, à partida, a luta contra o Infiel, por outro. No primeiro caso estão as Ordens palestinianas, de que as mais conhecidas são as do Templo e de S. João do Hospital de Jerusalém, e, no segundo, as nascidas na Península Ibérica no contexto da Reconquista (Ordem de Calatrava, Ordem de Santiago, entre outras). A justificação teórica da existência destas instituições foi dada por S. Bernardo a pedido do fundador da Ordem do Templo: a sua obra Liber de Laude Novae Militiae ad Milites Templi aponta para a possibilidade de conciliar a vida monástica com o exercício militar. Ao utilizar o termo militia, S. Bernardo pretendia dizer que os membros que a ela pertencessem, os miles ou milites Christi, eram homens que tinham associado os votos de pobreza, castidade e obediência, a mortificação do corpo e outras atitudes semelhantes, à luta física contra os Infiéis. Assim, S. Bernardo criticava os cavaleiros que se dedicavam à guerra apenas pelo prazer ou lucro que ela lhes proporcionava, ao mesmo tempo que exaltava quantos combatiam o diabo com armas espirituais e temporais.
No entanto, dentro da própria Ordem de Cister, alguns homens, pacifistas avant la lettre, se assim os podemos chamar, se insurgiam contra a criação das Ordens Militares. Um exemplo é Isaac de L'Étoile, abade cisterciense, que, a propósito de Calatrava, condenava quantos procuravam expoliar e massacrar em nome de Cristo os que não professavam a sua fé. No caso concreto das Ordens Militares que nasceram na Península Ibérica, foi de primordial importância a pregação feita por alguns monges de Claraval que exortavam à guerra contra os Muçulmanos. Este espírito, associado ao das Cruzadas que então se vivia com especial intensidade no Ocidente Europeu, fez surgir vários grupos de cavaleiros que procuravam associar uma prática de vida ascética com a defesa, pelo uso das armas, da sociedade cristã. Na Península Ibérica, estes homens reunidos em pequenas confrarias, protegidas pelos monarcas peninsulares, viviam em conventos-fortalezas, que, mais tarde, se vieram a transformar em centros de algumas Ordens Militares». In Maria Cristina A. Cunha, Estudos sobre a Ordem de Avis, séculos XII-XV, Faculdade de Letras, Biblioteca Digital, Porto, 2009.

Cortesia da FL do Porto/JDACT