quinta-feira, 27 de março de 2014

Ensaios. A História de Portugal. Vitorino Magalhães Godinho. «Não parece que Vico repercutisse no pensamento português setecentista e oitocentista, embora fosse conhecido da geração de 70 graças à tradução de Michelet, assim, é-o de Antero, de Teófilo…»

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A Divisão da História de Portugal em períodos
«(…) A abertura do derradeiro período corresponde à elevação do Brasil a reino e aos antecedentes da revolução liberal: não é, pois, inadequada.  A cesura de 1640, que Oliveira Marrins consagrara como a da passagem do império baseado no Oriente ao império baseado no Brasil, é ainda, politicamente, a da Restauração mas esbarra contra as objecções, em que poucos repararam, de Herculano. A grande novidade da Barcelos é, sem dúvida, o corte em 1557 em vez de 1580, neste caso parece ter-se atendido, em parte, a Herculano; aquela data é, no entanto, a da morte de João III, e como tal, só por si, não muito significativa. Se as divisões da história de Pornrgal em períodos que até aqui apresentámos exprimem, no fundo, teorias dessa história de Portugal ou aplicam de forma mais ou menos consciente rotinas didácticas e ideologias dorninantes, convém considerar as tentativas de periodização ligadas à aplicação sistemática de uma ideia operatória. É o caso das divisões em ciclos operadas quer na evolução portuguesa quer na brasileira. A ideia de ciclo, originária do pensamento mítico ligado aos cultos agrários da fertilidade e pastoris da fecundidade, transpõe-se para a esfera do pensamento filosófico relativo ao homem e à sociedade com Platão, cuja tipologia das formas políticas é ao mesmo tempo uma dinâmica pois elas não seriam mais do que momentos engendrando-se sucessivamente num movimento circular em constante repetição. Como concepção da história da humanidade, coube a Vico precisá-la e desenvolvê-la (1725, 1730, 1744). Essa história passaria recurrentemente por três idades: a idade divina, de teocracia, em que predomina o sentimento; a idade heróica, das aristocracias, época de violência e epopeia, em que o tom dominante é dado pela imaginação; e a idade propriamente humana, marcada pela inteligência e pelo saber racional, em que triunfa o direito, em que o regime é a república ou a monarquia temperada.
Se com o mundo greco-romano a humanidade alcançara a terceira idade, com o mundo medieval regressou à barbárie da primeira. Assim, em corsi e ricorsi, seria para os homens um eterno retorno e um eterno recomeço. Mas porque contrapondo a fantasia poética na construção da história ao racionalismo matemático e experimental, a filosofia de Vico não exerceu influência no movimento iluminista, e as revoluções industriais do século XIX, radicando a crença no progresso, como que varreram a concepção cíclica, que só quando aquela está em crise ressurge com Spengler principalmente: cada ciclo de cultura seria um domínio hermeticamente fechado, com personalidade própria, sujeito internamente a um ritmo que o faria passar da Primavera ao Verão, Outono e por fim Inverno, do nascimento à morte. Mas a ideia de uma como que lei de desenvolvimento interno de estrutura em vaso fechado vem já do século XIX e encontra-se, por exemplo, em Oliveira Martins. Não parece que Vico repercutisse no pensamento português setecentista e oitocentista, embora fosse conhecido da geração de 70 graças à tradução de Michelet, assim, é-o de Antero, de Teófilo, que em As modernas ideias na Literatura portuguesa (1892) lhe consagra um capítulo mas apenas em relação com os tropos, as figuras literárias e as formas de lógica poética; é-o de Oliveira Martins, que todavia não aceita sua filosofia (Theoria do Socialismo, 1872), preferindo-lhe a do historiador francês tradutor do italiano, e que transforma os ricorsi numa série de círculos concêntricos sucedendo-se sempre e alargando em periferia, logo ascensionais; a humanidade não está como os bois a tocar a nora, descreve sim uma espiral (carta a Barros Gomes, Correspomdência n.º XXV).
Mas a marcha da humanidade não segue uma evolução rectilínea e progressiva em todos os seus pontos, A história é um sistema de civilizações, e cada civilização é em si um sistema com história e leis próprias; em cada civilizaçio encontrar-se-ão sempre três mornentos incontestáveis e evidentes:
  • o da agregação ou mecanismo, o do espírito inconsciente representando em mitos (a que corresponde como método histórico a narrativa dos factos e a descrição do meio);
  • o da organização das forças democráticas operando como elementos naturais (e aqui cabe o estudo da concatenação sistemática dos costumes, dos movimentos de classes, das instituições); 
  • o da sociedade animada por um pensamento, em que a liberdade humana positivamente cria (método artístico, biografias) (O Helenismo, 1878, introdução; História da Civilização Ibérica, Liv. IV). Perpassa aqui a influência de Vico, e como o italiano; Martins considera paradigmática a história romana.
A ideia de ciclo serviu a Lúcio Azevedo para periodizar a história económica de Portugal e a vários historiadores brasileiros, na sua esteira, para periodizarem a história económico-social do Brasil. Não parece todavia que haja que relacionar tal periodização com a concepção cíclica à Vico nem talvez sequer com a dos ciclos culturais da etnologia, embora com esta manifeste certas afinidades. Trata-se fundamentalmente de épocas sucessivas, cada uma das quais estruturada em volta de um núcleo que é constituído por um produto dominante arrastando todas as outras actividades; em cada desenrola-se um processus segundo o qual o factor dominante aparece, se fortalece e depois de um apogeu decai e mesmo desaparece, e na recurrência de tal processus para vários produtos e actividades sucessivamente é que reside propriamente o carácter cíclico. Como escreve Afonso Arinos, em torno de tais sois económicos ficam, em cada ciclo, os planetas vassalos e submissos, maiores ou menores, descrevendo órbitas de mais longo ou mais diminuto alcance. São aquilo a que podemos chamar os comércios ancilares do produto principal». In Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios, Sobre a História de Portugal, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1ª Edição, 1968.

Cortesia LSdaCosta/JDACT