quinta-feira, 20 de março de 2014

A Velha Casa. Vidas são Vidas. José Régio. «Parem, parem… seus palhaços da velha casa. Basta! Livre, na própria urdidura que reconhece, apenas, o império da substância que expressa. De facto, o achamos atrasado, contaminado de espírito rotineiro, os jovens acabam de se especializar ‘lá fora’. Decerto o acham atrasado»

jdact e cortesia de litafalcao

Vidas são Vidas
«(…) Não se zangue! Mas é assim: que mais podemos ser umas do que outras? Nem o Demónio já quer nada co'a gente, que até os demónios gostam mas é de outros corpos… Era o seu antigo espírito galhofeiro ainda apontando. Voltava a Pedro: Corpos de gente nova: como o do senhor Pedro! O senhor Pedro é que tem de se precatar do Mafarrico. Fraquinho vinha ele, não se pode dizer outra coisa. Mas eu sempre na minha: Aquele não no há-de levar tão cedo a Matreira, arreda lá! Um rapazão daqueles há-de poder mais que a doença. Agora se o menino Lelito não aporfia, até contra a opinião do senhor doutor… Deu uma enérgica tapona na boca; e, dessa vez, recolheu ao silêncio. Sentira que estava dizendo qualquer coisa de inconveniente. Com efeito, se a própria vinda de Pedro chegara a levantar dificuldades, a sua instalação na casa de Azurara para um tratamento demorado não fora levada a cabo sem resistências. Logo de entrada pusera Dr. Laje o problema do contágio: Mesmo com todos os cuidados, havia risco. Tanto mais, que imediatamente Angelina dera mostras de se querer fazer enfermeira do doente. Não deixara de surpreender, tal atitude de Angelina. Por outro lado, o que se não poderia esperar de aquela rapariga? Mas era de constituição delicada, saúde caprichosa: porventura campo favorável ao desenvolvimento duma doença como a que se propunha tratar. Depois, seriam aqueles ares de Azurara os melhores para um doente de tal natureza? A proximidade do mar, que em noites de tempestade, com portas e janelas cerradas, ainda se fazia ouvir por toda a casa, parecia indicar o contrário. Sem que Pedro sequer suspeitasse tais debates, muito insistentemente fora discutida a hipótese da sua transferência para a quinta de Retorta, que os pinhais defendiam. Uma enfermeira profissional seria mandada vir, que aí ficaria ao seu serviço. Tal era a opinião do Dr. Laje, e certamente a mais sensata; como era a de D. Violante Graça, já tão familiar na casa que se tornara como de família. As hemoptises, os acessos de tosse, as temperaturas de Pedro, todo esse aparato lugubremente espectacular dos primeiros tempos, não faziam senão reforçar tal opinião. O seu próprio aspecto, nesses primeiros tempos em que ainda parecera ter piorado, era na verdade inquietante: Com a barba ruiva muitas vezes por fazer, as olheiras fundas, a cabeleira revolta nas almofadas, a pele esbranquiçada, às manchas, quase só recobrindo os ossos da caveira, Pedro parecia não ter senão cabelos, olhos e sardas. Também se não deixara de considerar (e aqui tinha palavra a experiência de D. Violante) que a instalação dum homem novo, mesmo em tal estado, numa casa onde só havia velhas e duas raparigas, pois Lelito fazia inesperadas ausências, não deixaria de provocar o reprovativo espanto do meio azurarense. Oh, decerto seria caso para aguçar a curiosidade e a língua da D. Revocata, da D. Lucinda Mendonças, do melífluo Ilídio Esteves e seu inseparável o jovem Sant'Ana, da D. Almerinda Freitas, de toda a Associação das Mães Cristãs, em suma! A esta puritana associação pertenciam não só as referidas e restantes senhoras bem de Azurara, como, pode dizer-se, a título de componentes de honra, os citados elementos masculinos.
Pois apesar de tudo, prevalecera a opinião de Angelina. Secundada pela de Lelito? Sem dúvida. Repetindo, embora, que em tal matéria pertencia ao Dr. Laje o supremo arbítrio, nem sequer se esforçara Lelito por esconder o seu íntimo desejo, que era ter o amigo sob o mesmo tecto. De qualquer maneira o teria: pois até já resolvera acompanhar Pedro, no caso de ter ele de ir para Retorta. Aí se aproveitaria dum mais íntimo contacto com a Natureza. Tanto melhor, se não fora preciso deixar aquelas paredes de Azurara! A este debate se mantivera completamente alheia Maria Clara, que nem chegara a ver o hóspede senão uma vez, de relance. Toda amarfanhada pela sua dramática viuvez, mal podia, ainda, comparticipar da vida da casa. Todos, aí, compreendiam isso. Todos continuavam a rodeá-la de solicitudes, e ninguém, de momento, pensaria em a consultar sobre o quer que fosse. Todos quereriam poder distraí-la do seu triste caso, arrancá-la a esse quarto onde vivia encerrada noite e dia. Ao mesmo tempo, admitiam que era demasiado cedo. Em vão Angelina procurava rezar com ela, pensando que na oração poderia ela achar um seguro refúgio. Maria Clara ficava fria, seca, longínqua, murmurando, por um comprazer mal consciente, palavras a que não ligava sentido nem esperança. E às vezes, involuntariamente, dava mostras de enfastiada com a presença de Angelina ou qualquer outra pessoa. Nisso a contrariavam, temendo-se quase de a deixarem sozinha. De noite nunca o ficava, dormindo com Angelina no mesmo quarto. A companhia da ti Pinheiro ainda era, durante o dia, a que parecia importuná-la menos, não lhe exigindo nenhum constrangimento. Mas ti Pinheiro tinha de se manter calada, o que não sem sacrifício acabara ti Pinheiro por compreender. Os bilros saltitavam nos dedos, estralejavam no pique da velha rendilheira.
E Maria Clara ali estava na sua cadeira de braços, às vezes com um bordado esquecido no regaço, as mãos caídas no bordado, e olhando pela janela como se apenas a seduzisse aquela mancha mais luminosa. Quase nunca a viam agora chorar. Se chorava, era furtivamente, ou porventura sem saber. O espanto do que lhe acontecera parecia continuar a ser o seu estado, ou sentimento, mais permanente; não menos sombrio agora, não menos profundo, pelo facto de muito menos expansivo. E assim Pedro ficara instalado na casa de Azurara para o tempo que fosse preciso. Tempo?... Que felicidade, deixar correr o tempo sem se lembrar dele! Ocupava o quarto de Lelito, que provisoriamente passara a ocupar o que fora dos pais. Como não dera pelo problema da sua instalação na casa, também quase não dava pelos perigos a que se obrigavam os que o tratavam e serviam; especialmente Angelina, sempre tão frequente e solícita em redor do seu leito! Nesse particular compartilhava Pedro de certa inconsideração popular, que a tais perigos de contágio, como a outros, responde há-de ser o que Deus quiser. Não só a poderosa fé ingénua, como também a inconsciência da ignorância e a impossibilidade de medidas higiénicas na promiscuidade a que os obriga a miséria, levam os pobres a essa posição de quase confiança, quase indiferença, quase desespero ou fatalismo. Como que estranho ao problema da existência ou providência de Deus, nem por isso deixava Pedro de muitas vezes pensar: Há-de ser o que Deus quiser! E pensar assim dava-lhe uma espécie de sossego: Atirando lá para o Desconhecido a solução de qualquer caso, sentia-se irresponsabilizado; até vagamente protegido. No caso presente, mais ou menos confiava em que nenhum Deus pagaria com mal o bem que a ele, Pedro, lhe faziam. Sim, mais ou menos: Para os simples com quem, por vezes, se irmanava, Deus era uma Pessoa bastante próxima, quase familiar, apesar de toda-poderosa e nem sempre compreensível nos seus desígnios». In José Régio, A Velha Casa, Vidas são Vidas, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003, ISBN 972-27-1258-6.

Cortesia de INCM/JDACT