quinta-feira, 27 de março de 2014

Ensaio sobre o Absurdo. O Mito de Sísifo. Albert Camus. «O fim é o universo absurdo e esse estado de espírito que aclara o mundo com uma luz que lhe é própria, para fazer com ela resplandecer o rosto privilegiado e implacável que nele identifica»

Cortesia de wikipedia

Os muros absurdos
(…) Como as grandes obras, os sentimentos profundos sempre significam mais do que têm consciência de dizer. A constância de um movimento ou repulsão dentro da alma se reconhece em hábitos de fazer ou de pensar e se persegue em consequências que a própria alma ignora. Os grandes sentimentos trazem junto com eles seu universo, esplêndido ou miserável. Com sua paixão, aclaram um mundo exclusivo onde reencontram seu próprio clima. Há um universo do ciúme, da ambição, do egoísmo ou da generosidade. Um universo, isto é, uma metafísica e um estado de espírito. O que é verdadeiro para sentimentos já especializados o será mais ainda para emoções, no fundo, a um tempo tão indeterminadas, tão confusas e tão certas, tão distantes e tão presentes quanto aquelas que o belo nos desperta ou que o absurdo nos suscita. O sentimento da absurdidade para com o desvio de uma rua qualquer pode meter-se na cabeça de homem qualquer. Assim como, na sua desoladora nudez, na sua luz sem cintilação, ele é incapturável. Mas até essa dificuldade merece reflexão. É provavelmente certo que um homem permanece para sempre desconhecido de nós e que para sempre haverá nele alguma de irredutível que nos escapa. Mas, praticamente, conheço os homens e os reconheço no seu comportamento, no conjunto dos seus actos, nas consequências que a sua passagem vai provocando na vida. De igual modo, todos esses sentimentos irracionais que a análise não saberia dominar eu posso praticamente defini-los, praticamente apreciá-los, para reunir a soma das suas consequências na ordem do entendimento, para captar e anotar todos os seus aspectos, para descrever o seu universo. É verdade que, aparentemente, por ter visto cem vezes o mesmo actor, eu não conhecerei pessoalmente melhor esses seus traços. No entanto, se faço a soma dos heróis que ele encarnou e se digo que o conheço um pouco mais na centésima personagem recenseada, já se sente que haverá aí uma parcela de verdade. Porque aparente paradoxo é também um apólogo. Tem a sua moralidade. Ensina-nos que um homem se define tanto pelas suas comédias quanto pelos seus impulsos sinceros.
Dá-se o mesmo, num tom abaixo, com sentimentos inacessíveis no coração mas parcialmente traídos pelos actos que os animam e os estados de espírito que pressupõem. Sente-se que, dessa maneira, defino um método. Mas também se sente que esse método é de análise e não de conhecimento. Porque os métodos envolvem metafísicas, traem na sua insciência as conclusões que, às vezes, pretendam ainda não conhecer. Por isso as últimas páginas de um livro já estão nas primeiras. É um nó inevitável. O método aqui definido confessa a percepção de que todo o verdadeiro conhecimento é impossível. Só se podem enumerar as aparências e se fazer sentir o clima. Então, talvez possamos atingir esse inapreensível sentimento da absurdidade nos mundos diferentes, mas fraternos, da inteligência, da arte de viver ou da arte simplesmente. O clima da absurdidade está no começo. O fim é o universo absurdo e esse estado de espírito que aclara o mundo com uma luz que lhe é própria, para fazer com ela resplandecer o rosto privilegiado e implacável que nele identifica. Todas as grandes acções e todos os grandes pensamentos têm um começo irrisório. As grandes obras nascem, frequentemente, na esquina de uma rua ou no barulho de um restaurante. Assim também a absurdidade. O mundo absurdo, mais que qualquer outro, extrai a sua nobreza desse nascimento miserável. Em certas situações, responder nada a uma questão sobre a natureza dos seus pensamentos pode ser uma dissimulação para com um homem. Os entes queridos sabem disso. Mas se essa resposta é sincera; se representa esse estado d'alma em que o vazio se torna eloquente, em que a cadeia dos gestos quotidianos é rompida, e em que o coração inutilmente procura o anel que a restabeleça, então ela é como que o primeiro sinal da absurdidade.
Ocorre que os cenários se desmoronam. Levantar-se, bonde, quatro horas de escritório ou fábrica, refeição, bonde, quatro horas de trabalho, refeição, sono, e segunda, terça, quarta, quinta, sexta e sábado no mesmo ritmo, essa estrada se sucede facilmente a maior parte do tempo. Um dia apenas o porque desponta e tudo começa com esse cansaço tingido de espanto. Começa, isso é importante. O cansaço está no final dos actos de uma vida mecânica, mas inaugura ao mesmo tempo o movimento da consciência. Ele a desperta e desafia a continuação. A continuação é o retorno inconsciente à mesma trama ou o despertar definitivo. No extremo do despertar vem, com o tempo, a consequência: suicídio ou restabelecimento. Em si, o cansaço tem alguma coisa de desanimador. Aqui, eu tenho de concluir que ele é bom. Pois tudo começa com a consciência e nada sem ela tem valor. Essas observações não têm nada de original. Mas são evidentes: por ora isso é suficiente para a oportunidade de um reconhecimento sumário das origens do absurdo. A simples preocupação está na origem de tudo». In Albert Camus, O Mito de Sísifo, Ensaio sobre o Absurdo, Livros do Brasil, ISBN 978-972-38-2759-0.

Cortesia de LBrasil/JDACT