terça-feira, 18 de março de 2014

O Livro Negro do Cristianismo. Jacopo Fo. Sérgio Tomat. Laura Malucelli. «… das incríveis utopias sociais e comunitárias, que funcionavam muito bem até à chegada dos soldados do papa e do imperador, excepcionalmente reunidos para massacrar os cristãos que viviam em comunidade, sem autoridade ou impostos»

Cortesia de wikipedia

Jesus amava as mulheres
«(…) A escola encheu as nossas cabeças de histórias sobre generais geniais e legisladores brilhantes. Mas Roma também era outra coisa. As mulheres eram consideradas animais de propriedade dos pais e maridos, que tinham o direito de bater nelas e matá-las. Uma mulher romana digna era aquela que, assediada por um malfeitor, tirava a própria vida. Não tanto para salvar a própria honra, mas para glorificar a do marido. As crianças, na escola, conheciam bem o chicote e os professores tinham exemplares de várias formas e tamanhos pendurados na sala de aula. Como acontece ainda hoje em alguns lugares do planeta, em Roma, também, os bebês recém-nascidos do sexo feminino muitas vezes eram sufocados ou abandonados. As recém-nascidas abandonadas com mais sorte, muitas vezes, eram pagas por vendedores de escravos, que as criavam e, aos 5 ou 6 anos, começavam a prostituí-las. Júlio César não pode, no entanto, ser considerado o inventor do extermínio em massa, antes dele, conhecemos outros matadores extraordinários (hititas, assírios, babilónios), mas o divino Júlio com certeza pode ser eleito o aperfeiçoador emérito do genocídio organizado. Em De Bello Gallico, explica como organizou e lançou a horda de bandidos gauleses e germânicos contra o povo eburone, culpado de não querer se sujeitar ao Império, oferecendo aos criminosos asilo e protecção nos seus acampamentos fortificados. O futuro imperador depois narra, com certo prazer, como conseguiu aplicar toda a espécie de infâmias, traições e armadilhas, até eliminar definitivamente da face da Terra a raça dos eburones. Foi o primeiro comandante a matar todos os habitantes de uma cidade, incluindo crianças, para puni-los por terem resistido (Moisés, pelo menos, depois de conquistar a cidade de Madian, poupou as mulheres virgens). Por séculos, os romanos se divertiram vendo prisioneiros de guerra lutando entre si nos circos. Num único mês, o imperador Diocleciano fez com que quarenta mil homens se matassem no Coliseu, mais de mil por dia, enquanto uma multidão exaltada bebia vinho misturado com mel e chumbo, fumava ópio, fazia negócios e copulava com prostitutas e prostitutos, na maioria pré-adolescentes. A quantidade de sangue e de órgãos esquartejados não os incomodava e em parte era coberta pelo fedor de vómito, já que os romanos, para continuarem enchendo-se de comida e bebida, tinham o hábito de enfiar dois dedos na garganta para vomitar o que acabavam de ingerir.
O cristianismo fora maltratado cruelmente e sofria havia mais de um século as perseguições do poder imperial. Os cristãos eram arrastados até às arenas, onde eram massacrados entre os gritos e as risadas de uma multidão de apaixonados pelo genocídio lúdico. Então, de repente, os perseguidores se tornam paladinos da Igreja. Teologia, rituais, interpretações do Evangelho são cuidadosamente transformados e adaptados à linguagem e ao pensamento do poder romano. O cristianismo não redime quem havia martirizado os primeiros cristãos, e sim se limita a servir a eles. As histórias sobre as conversões dos imperadores quase sempre são feitas de modo colossal. Constantino é aquele que adopta o cristianismo como religião oficial do Império. O mesmo imperador que mandou matar o próprio filho, a mulher, o sogro e o cunhado. Reza a lenda que Jesus apareceu para ele e lhe prometeu vitória na batalha em troca da adopção do cristianismo como única religião do mundo civilizado e do uso do símbolo da cruz, alçado de forma triunfante na batalha. Naturalmente, nem todos os seguidores de Jesus concordaram com esse pacto, que implicava uma verdadeira renúncia aos valores cristãos fundamentais. E, então, um dos primeiros gestos cristãos de Constantino foi perseguir todos os cristãos que seguiam o Evangelho literalmente e, assim, forçosamente, estavam em conflito com os devotos do poder. Um sem-número deles foi morto, outros tantos acabaram no exílio, desprovidos de qualquer bem, outros foram reduzidos à escravidão.

Lutas fratricidas
Os primeiros séculos do cristianismo são marcados por contínuas investidas contra os cristãos que não aceitaram os ajustes e as interpretações dos ditames do Filho de Deus. A elas se alternam lutas pela divisão do poder entre papas e imperadores, papas e antipapas, papas e bispos, bispos e bispos, numa sucessão de conspirações, cismas e lutas que não excluíam a força física. É quase impossível reunir todos os acontecimentos sanguinários que primeiro assolaram a Europa e, depois, o mundo, e que nasceram de conflitos pelo poder nos quais a Igreja se interpôs entre as forças combatentes. Milhões de pequenas conspirações, guerrinhas e ameaças que ninguém nunca contou. Neste livro, limitamo-nos a citar os eventos mais importantes, mas confiamos na imaginação do leitor para completar o quadro da situação da fé naquela época. Os níveis máximos de fúria eram atingidos exactamente quando se devia sufocar o renascimento das ideias originais de Jesus. Elas nunca deixaram de acordar as pessoas para a dignidade e a celebração do valor colectivo do amor cristão. O que testemunha esse poder extraordinário da palavra de Jesus é o surgimento, durante séculos após seus ensinamentos, das incríveis utopias sociais e comunitárias, que funcionavam muito bem até à chegada dos soldados do papa e do imperador, excepcionalmente reunidos para massacrar os cristãos que viviam em comunidade, sem autoridade ou impostos». In Jacopo Fo, Sérgio Tomat, Laura Malucelli, Il Libro nero del cristianesimo, O Livro Negro do Cristianismo, Itália, 2000, 2005, Ediouro, Rio de Janeiro, Brasil, 2007, ISBN 85-000-1964-6.

Cortesia de Ediouro/JDACT