sábado, 8 de março de 2014

Retratos Vivos. Histórias de Amor de Outros Tempos. Pascal Quignard. «Os escudeiros não o reconheceram. O seu cão não o reconheceu. A sua ama não o reconheceu. Os irmãos não o reconheceram. As irmãs não o reconheceram. A sua antiga esposa, que tinha voltado a casar, não o reconheceu»

jdact e cortesia de wikipedia

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« Dor indescritível que se sente na presença de pais demasiado idosos, ou que sofrem da doença de Alzheimer, ou que saem de uma anestesia geral ou de um estado de coma, não nos reconhecem, ou só nos reconhecem por alguns instantes, ou se enganam, vendo em nós outros vivos, ou nos confundem com mortos que nós conhecemos e já morreram há muito tempo. A vida de Santo Aleixo é a seguinte. No ano 364, Eufemiano, então prefeito de Roma, estava casado com uma rica patrícia chamada Aglaé. Tiveram vários filhas e um único filho varão, a quem chamaram Aleixo. No dia do seu casamento, enquanto a jovem esposa tirava o alfinete da sua túnica e revelava ao marido as suas partes íntimas intactas, Aleixo apagou a candeia, cobriu bruscamente o corpo da mulher, deu-lhe o seu anel de ouro e deixou-a. Foi até à praia e embarcou para Laodiceia. Daí, partiu para Edessa, na Síria, onde se encontrava o único retrato que teria sido conservado de Jesus de Nazaré: não tinha sido feito por mão humana, mas o seu rosto dolorido ficara gravado ao enxugar-se num pano que pertencera a uma prostituta da cidade de Jerusalém chamada Verónica. Então, Aleixo beijou o pano sagrado, logo a seguir vendeu todas as suas roupas e, completamente nu, sentou-se e pôs-se a mendigar debaixo do pórtico da Basílica da Virgem Maria de Edessa.
Ficou debaixo desse pórtico durante dezassete anos. Um dia, porém, sentiu vontade de voltar para casa; com o dinheiro das esmolas comprou uns calções e uma écharpe; saiu de Edessa; meteu-se num barco; desembarcou em Óstia e encaminhou-se a pé para Roma; empurrou a porta do palácio de seu pai. Os escudeiros não o reconheceram. O seu cão não o reconheceu. A sua ama não o reconheceu. Os irmãos não o reconheceram. As irmãs não o reconheceram. A sua antiga esposa, que tinha voltado a casar, não o reconheceu. Nenhum dos seus amigos o reconheceu, mas o intendente do palácio, que era um cristão muito piedoso, tomou-o sob a sua protecção e todos os dias lhe dava pão e água. Aleixo agradeceu-lhe e sentou-se, nu, debaixo da escada. Durante dezassete anos, viveu assim, desconhecido, na casa de seu pai. Roía as migalhas dos banquetes, as espinhas dos peixes, a pele branca dos ouriços das castanhas que há mesmo por baixo dos espinhos, ou as cascas duras das nozes. Mordiscava os ossos das carnes, os caroços dos frutos, as cascas dos melões, as conchas das ostras e dos mexilhões. Era um caixote do lixo. Um dia, sentindo a morte chegar, Aleixo estendeu a mão debaixo da escada e pediu ao intendente que lhe desse um estilete e um pedaço de pele de vitelo usado, para escrever. Escreveu o relato da sua vida e morreu. Ninguém se apercebeu, mas os imperadores Arcádio e Honório e o papa Inocêncio foram avisados em sonhos da sua morte.
Um pajem imperial acorreu, mandou abrir as portas da casa do prefeito de Roma, pegou num archote e, debaixo da escada, inclinou-se para o santo, já rígido, mas que ainda tinha na mão a sua vida escrita. A sua vida secreta foi lida em voz alta, diante dos seus. Em 1648, em Lunéville, na Lorena, Georges de La Tour pintou para Monsieur de la Fierté o momento em que o pajem imperial descobriu o corpo de Santo Aleixo, debaixo da escada de seu pai. Então, Eufemiano, Aglaé, a primeira esposa de Aleixo, as irmãs, os irmãos, os sobrinhos, os escudeiros e os amigos deitaram-se lado a lado nas lajes do pavimento que rodeava a escada do palácio paterno, e uns adoraram o filho, outros, o irmão, o tio, o senhor, o primeiro marido, o amigo morto. No 16º dia das calendas do mês de Agosto do ano 398, o corpo de Santo Aleixo foi transportado pelos principais cidadãos de Roma e pelo pai, o prefeito da cidade, numa padiola de ouro, ornada de rubis e lápis-lazúli, para o templo de São Bonifácio, em Roma». In Pascal Quignard, Histoiresd’Amour du Temps Jadis, Editiones Philippe Picquier, Arles, 1998, Histórias de Amor de Outros Tempos, Retratos Vivos, tradução de Maria Vilar Figueiredo, Edições Cotovia, Lisboa, 2002, ISBN 972-795-043-4.

Cortesia de Cotovia/JDACT