terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Cultura no 31. À volta do casamento do infante Pedro. Douglas Mota Xavier Lima. «… entam juntamente com o infante Eduarte seu Irmao requererom a seu Padre licença, a qual lhe de todo foi denegada…»

Cortesia de wikipedia

«(…) Acrescenta-se que, mesmo trazendo mais vestígios acerca das acções de dom Pedro, esta crónica informa pouco sobre a sua juventude. A Crónica do Conde Dom Pedro de Menezes apresenta algumas menções ao Infante, sendo interessante por mostrá-lo ajudando na defesa do reino perante possíveis ataques de Castela, e por indicar um zelo de João I com o filho que queria participar na campanha de socorro enviada a Ceuta (o cronista menciona que dom Pedro foi pelas suas terras levando notícias da organização da campanha de auxílio a Ceuta; o mesmo tinha muita vontade de integrar a campanha, chegando a tentar disfarçar-se para embarcar nos navios que partiriam; no entanto, após ser descoberto o Infante foi requerer permissão do rei para seguir com as tropas; eis a descrição de Zurara sobre a resposta de João I: entam juntamente com o infante Eduarte seu Irmao requererom a seu Padre licença, a qual lhe de todo foi denegada, mandando, que todavia o Infante Dom Enrique partisse logo com a frota, como ante tinha determinado; e que o Infante Eduarte, e o Infante Pedro se fossem ambos ao Algarve, e hy ouvessem seu conselho, e o que lhes parecesse, pozessem em obra; por mais que o trecho indique que somente dom Henrique foi designado para chefiar a campanha, em nenhum momento transparece que o rei visava prejudicar de alguma forma o filho Pedro; antes parece que monarca João I buscou, nesse contexto, proteger os dois filhos mais velhos de qualquer incidente na campanha africana; assim, afirma-se a ideia de zelo do rei que procurava resguardar os herdeiros directos da coroa e manter a protecção militar do reino).
Para além dos textos cronísticos citados, os principais documentos acerca do Infante provêm da chancelaria régia e demarcam a formação do seu património em torno de Coimbra, concentrando-se no período regencial. Todavia, essa especificidade das fontes prejudica uma visão global e mais detalhada, itinerários, contactos, actuação na Corte, do seu percurso de vida (Baquero Moreno, por exemplo, publicou um estudo acerca dos itinerários do Infante, no entanto, se restringiu ao período da regência (Os itinerários do Infante D. Pedro 1438-1449; na mesma obra, Moreno considera que o largo período entre o nascimento e a morte de Duarte I constitui uma etapa da vida do Infante que mal se conhece e tantas vezes se distorce em função de uma atitude raras vezes isenta de algum preconceito, O Infante Pedro e o ducado de Coimbra). Assim como João I e Duarte I, Pedro também se afirmou como escritor de importantes tratados e epístolas, além de actuar como tradutor. A sua obra mais conhecida é a Virtuosa Benfeitoria, e entre os textos destinados ou oferecidos ao irmão e futuro rei, soma-se o Livro dos Ofícios. Por fim, uma das faces mais citadas da intervenção epistolar do Infante, a Carta de Bruges, escrita durante a sua passagem pela Flandres, oferece indícios da sua actuação na corte portuguesa. No início da carta o Infante informa a origem da fonte, ou seja, um pedido enviado por Duarte I, indicando também que a prática de dar conselhos ao irmão era anterior à escrita da epístola (per vos me foy mandado em hu uosso regymento que despois que fose em esta terra uos fizesse hu escrito d aujsamento tal como o outro que me vos destes). A carta mostra a habilidade político-administrativa de dom Pedro e demarca a sua actividade como conselheiro, o que permitiu que fosse visto como um representante mais qualificado deste pré-renascimento cultural em Portugal. Observa-se que a produção das obras se insere num período de quinze anos (1418-1433) e auxilia-nos na inserção histórica do Infante no contexto anterior e subsequente ao casamento. Destarte, tal como Baquero Moreno, reafirma-se que são escassas as informações sobre a instrução recebida e as experiências vivenciadas entre 1392 e 1415, ano do nascimento e da conquista de Ceuta, respectivamente, e mesmo acerca do período que vai até 1438, início da regência de dom Pedro em Portugal.
É ponto comum na historiografia portuguesa, sob o peso das palavras de Oliveira Martins em Os Filhos de D. João I, a defesa de que a primeira metade do século XV foi marcada pela actuação ímpar dos ínclitos infantes de Avis. Nesse quadro laudatório, os casamentos são pouco explorados, com excepção do enlace de dona Isabel, porém permitem-nos observar a política matrimonial do monarca João I. O novo rei português, ainda na posição de Mestre de Avis, fora pai duas vezes, Afonso (c. 1380) e Beatriz (c. 1382), sendo essa descendência ilegítima usada como base para o alargamento da política matrimonial. Nesses anos de afirmação dinástica e ainda sem contar com filhos da rainha dona Filipa em idade nubente, o novo monarca estabeleceu uma estratégia familiar capaz de promover um fortalecimento interno, casamento de Afonso, e uma ampliação das relações externas, consórcio de Beatriz (o casamento de dona Beatriz, filha natural de João I, com Thomas Fitzalan, conde de Arundel, paradigma documental da negociação de uma aliança)». In Douglas Mota Xavier Lima, À volta do casamento do infante Pedro, UFOdoPará, ICE, PCHumanas, Santarém, Brasil, Revista Medievalista, Nº 21, Janeiro-Junho 2017, Universidade Nova de Lisboa, FCS e Humanas, FC e Tecnologia, ISSN 1646-740X.

Cortesia da RMedievalista/FCT/JDACT

Conhecimentos no 31. Santarém Medieval. Maria Ângela Beirante. «… hum forno e hum lagar dazeite que an no dicto logo a par da torre da barata os quaes forom de Pero Anes de Pajuha (...) e tres portaes de casas que son na Rua da Alcaçova»

jdact

O perímetro amuralhado
«(…) Montês Matoso refere-se assim à famosa torre: junto da porta da Alcaçova da parte do Poente, no lugar mais alto estava a celebrada Torre do Bufo… Zeferino Brandão, no capítulo X da obra citada, baseando-se num documento que encontrou na repartição da Fazenda do distrito de Santarém, afirma que defronte das casas do conde de Tarouca, na Alcáçova, havia uma cerca com árvores e, no alto dela, uma torre que se chamava do Bufo. Opina que esta ficava para a parte sul da cerca, sobre o muro da Alcáçova, e que tinha de comprido sobre a calçada que vai para o Alfange 105 varas e meia. Além de nos dar a indicação, tal como Montês Matoso, de que foi demolida em 1660, aventa a hipótese de ter sido esta a torre que Sancho I doara à ordem de Santiago, em 1193, como se disse. Ocorre aqui salientar que não são muitas as informações que conheço acerca da Torre do Bufo. As mais antigas encontram-se no tombo da Alcáçova de 1479, onde parece confundir-se com a Torre da Covilhã ou então pode admitir-se que fica situada no mesmo beco (beco primeiro que uay pera a torre da couylhãa ou torre do bufo que todo he hüu).
Em contrapartida, para os tempos mais recuados achei, pelo menos, três referências a uma torre situada na Alcáçova, chamada Torre da Barata. Na sua proximidade, encontrava-se uma casa (domus juxta turri de Barata) que foi legada à igreja de Santa Maria pelo seu proprietário Afonso Martins, segundo nos refere um obituário do século XIII. Em 1330, procedeu-se à arremataçâo por dívidas de alguns bens sitos na Alcáçova, contando-se entre eles: hum forno e hum lagar dazeite que an no dicto logo a par da torre da barata os quaes forom de Pero Anes de Pajuha (...) e tres portaes de casas que son na Rua da Alcaçova. Em conclusão: nos tempos mais recuados fala-se da Torre da Ladra e da Torre da Barata que não devem ser confundidas. A Torre do Bufo é um nome referido muito mais tarde. Será a designação posterior de uma das duas torres anteriores? É uma hipótese plausível.

As ordens militares e as instituiçoes religiosas
É um facto incontestável que um dos grandes suportes da reconquista cristã foi o espírito cruzadístico, cristalizado nas ordens religioso-militares de freires-soldados: actuando ao lado do rei nas operações militares, os freires viram magnanimamente recompensados os seus esforços pelas doações que os monarcas lhes fizeram. Tais doações eram-lhes prometidas, por vezes, mesmo antes das conquistas se concretizarem, servindo de estímulo para a luta. Deve ter acontecido assim com a ordem do Templo que, em Abril de 1147, recebeu de Afonso Henriques todas as rendas eclesiásticas da vila de Santarém, conquistada havia um mês, em cumprimento da promessa régia feita antes e para recompensar a ajuda prestada. Em consequência desta doação, os cavaleiros Templários edificaram na Alcáçova a igreja de Santa Maria, por mandado de mestre Hugo e sob a vigilância de Pedro Arnaldo, segundo a inscrição existente ainda na fachada do edifício que estava terminado em 1154.
Depois da conquista de Lisboa, a posse do eclesiástico de Santarém foi contestada pelo bispo Gilberto. Por isso. Afonso I, em 1159, fez doação do castelo de Cera e seus termos àquela ordem, em troca do referido eclesiástico que passava para a jurisdição episcopal de Lisboa, excepto a igreja de Santiago de Santarém que continuou a pertencer aos Templários. Mantiveram ainda as suas casas na Alcáçova. junto da Porta do Sol. Além da posse desta igreja, situada a meio caminho entre a Alcáçova e a Ribeira, os freires do Templo detinham muitas terras na periferia de Santarém. Em 1180 contavam-se, por exemplo, entre os proprietários das vinhas de Alvisquer. Outra ordem que se implantou no século XII. em Santarém e seu termo, foi a de Évora, também chamada de Calatrava ou de Avis. Em 1173, Afonso Henriques fez uma carta de doação e confirmação a Gonçalo Viegas, mestre daquela ordem, de certos bens em Évora e dumas casas que possuía em Santarém, em Seserigo: de domibus meis quos habeo in Sanctarene in Seserigo. É possível que, ainda no século XII, esta ordem tenha adquirido (talvez por doação) a quinta do Gualdim. a sete quilómetros de Santarém. que já possuía em 1219. De facto, um outro documento do cartório de Avis testemunha-nos a compra de uma herdade na Fonte da Pedra. contígua à quinta do Gualdim, no ano de 1186. Pertencia a Nuno Guterres e são seus compradores Gualdim (daí, o nome que se manteve) e sua mulher Ausenda Domingues». In Maria Ângela V. Rocha Beirante, Santarém Medieval, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (35813), 1ª edição em Português, Dezembro de 1980.

Cortesia da UNL/FCSH/JDACT

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

A Jesuíta de Lisboa. Titus Muller. «Dalila gostava de estar em Alfama, o bairro dos estivadores e das lavadeiras, das prostitutas, dos ladrões e dos jornaleiros. Desde sempre fora esta a zona da cidade onde paravam os que a sociedade…»

jdact

«(…) A menina levantou o olhar, fitando a anciã. E porque não? Passa a maior parte do tempo a dormir. Está velho e cansado, a anciã afastou do rosto uma madeixa de cabelo branco. Além disso, já não tem dentes. Quando ele boceja podes ver que lhe faltam os quatro caninos grandes. Como pode, assim matar pássaros à dentada? E ele gosta de pão? A anciã acenou afirmativamente com a cabeça. Posso fazer-lhe ume festa? Claro que sim. Com todo o cuidado, a pequenita passou a mão sobre o pelo eriçado. O gato consentiu, continuando a comer como se nada fosse. Gatinho velho e lindo, disse a menina. Como seria ser rnãe? Daria banho à menina e comprar-lhe-ia roupas bonitas. Ensinar-lhe-ia a entrançar grinaldas de flores. Todas as noites haveria de cantar com ela. No entanto, o homem que Dalila amava nada sabia a respeito dela. Sentia uma afinidade entre ambos, um sentimento que a dominava inteiramente, ao passo que ele calhara com a mulher errada. A sua irmã gémea tinha sangue-frio e era calculista, era pretensiosa, altiva e superficial. Nada tinham a ver um com o outro. Como era possível que ele amasse Leonor e não ela? Não conseguiu deixar de pensar no beijo que ele dera à sua irmã durante a sua última visita, um beijo nos lábios. Sentira um fogo a arder na barriga. Havia algo naquele mundo que não batia certo. Deus deveria estar distraído, não prestava atenção. No fim do íngreme desfiladeiro formado por aquela rua resplandecia o Tejo, um vasto tapete de água azul repleto de navios. Se ela pudesse fugir com Antero! Se conseguisse esgueirar-se para o interior do seu navio e, na companhia dele, navegar para longe da irmã! Lá fora, no mar, ele logo abriria os olhos. Iria reparar nela, Dalila, e dar-se conta do quanto andara cego. O Senhor tinha aqui algo a fazer. Tinha de ajudá-la. Através da Rua Nova dos Mercadores avançava uma interminável massa de gente, que murmurava, gritava e ria. Deixou-se mergulhar nela e virou de seguida à esquerda. De ambos os lados da rua erguiam-se barracas que se ofereciam à multidão. Alguns desses pequenos comerciantes haviam-se estabelecido nas escadas das casas. Podia-se-lhes comprar malas, cestos, adornos, tachos, facas. Outros comerciantes ainda tinham tâmaras e cerejas para oferecer. Cheirava a bacalhau assado. Sobre este espalhava-se o odor a sabão em pó. As lavadeiras, nos pátios, espalhavam-no na água das suas tinas, era o odor mais típico dos bairros mais pobres da cidade. Desde que estava apaixonada por Antero, apreciava este cheiro. Identificava-se com os pobres. Tal como ela, eles eram infelizes.
Dalila gostava de estar em Alfama, o bairro dos estivadores e das lavadeiras, das prostitutas, dos ladrões e dos jornaleiros. Desde sempre fora esta a zona da cidade onde paravam os que a sociedade colocava à margem. Viviam aqui mouros empobrecidos, aleijados, zarolhos e judeus convertidos. Lisboa assemelhava-se a um anfiteatro que descia em direcção à água. O porto era o palco. Cinco colinas rodeavam o grande vale onde se situava o centro da cidade, dispostas como se fossem as galerias de um teatro. Alfama, no entanto, situava-se mais na rectaguarda, igualmente perto do rio, porém excluída. A cidade ficava de costas viradas para ela. Só a Inquisição (maldita) é que aparecia com frequência em Alfama, onde ia à caça de judeus que se mantivessem fiéis às suas velhas práticas, que lhes eram proibidas. Sobre os degraus de uma escada, um comerciante havia exposto centenas de figuras de santos pintadas de várias cores. A maioria delas representava Santo António, o padroeiro da cidade. Cada uma das figuras do santo segurava o Menino Jesus no braço esquerdo e no direito um livro e um lírio. Ainda assim, nem todas as figuras eram iguais. Dalila segurou numas quantas individualmente e observou-as. Um Santo António lançava um olhar irado, ao passo que outro soltava uma lágrima, o terceiro tinha uma madeixa de cabelo a tapar-lhe parte do rosto, ao quarto a tinta que coloria o hábito de monge já estalara. O quinto, no entanto, que ela segurava nas mãos, agradou-lhe logo à primeira. Sorria para o Menino, que segurava no braço, e de resto estava ileso. Dalila perguntou o preço. Dois tostões. Saída do manto do comerciante, estendeu-se uma mão magra e seca. Por debaixo das pregas da capa era impossível reconhecer os traços do seu corpo. Qual a magreza do homem, ao certo? Vendia aquelas figuras e ele próprio mais não era do que uma sombra. Dou-lhe um. O homem magro olhou-a, como que a avaliá-la. Preferiria mesmo que fossem dois. Claro, o vestido de seda. Revelava que ela provinha de um meio abastado». In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, tradução de Paulo Rêgo, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.

Cortesia Cletras/JDACT

Justine. Quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell. «Entretanto, não existe mulher, por mais humilde velha ou usada, que não lhe mereça uma demonstração exterior de consideração…»

jdact

«(…) A vozinha cariciosa envolve todas as frases com um sentido equívoco, e o seu discurso não perde nada com os pequenos e lancinantes suspiros com que ele o sublinha. Durante uns minutos reina o silêncio. Vejo no espelho o alto da cabeça de Mnemjian, essa crista obscena de cabelos negros que ele arranjou em caracol ao lado das fontes, sem dúvida com o fim de distrair as atenções da marreca. Enquanto manobra a navalha, os olhos perdem o brilho e o rosto torna-se tão inexpressivo como um fundo de garrafa. Os dedos trabalham as nossas faces com o mesmo desinteresse frio com que trabalham as faces exigentes (e, sim!, felizes) dos mortos. Desta vez, diz Mnemjian, há-de ficar satisfeito. Ela é nova, asseada e não custa caro. Verá por si próprio, é uma perdigota, um raio de mel com todo o mel intacto dentro dela, uma pombinha. Neste momento tem falta de dinheiro. Saiu há pouco do manicómio de Helwan, onde o marido tentou interná-la. Arranjarei para que ela esteja no Rose-Marie na última mesa do passeio. Vá vê-la quando for uma hora; se a quiser, entregue-lhe o cartão que eu lhe vou dar. Mas lembre-se de que é a mim que deve pagar. De homem para homem, é a única exigência que eu faço. Durante um momento não diz mais nada. Pombal continua a observar a sua própria imagem no espelho, enquanto a curiosidade natural que o revolve se debate com a imensa apatia do Estio. Mais tarde precipitar-se-á, sem dúvida, no apartamento, levando consigo qualquer pobre criatura esgotada e bravia, cujo sorriso idiota nenhum outro sentimento despertará nele além da piedade. Não posso negar a bondade do meu amigo, pois, na verdade, dá-se a trabalhos para conseguir empregar essas raparigas; com efeito, a maior parte dos consulados contam entre o seu pessoal antigas desgraçadas que se esforçam desesperadamente por parecer dignas, e é à assiduidade de Georges junto dos seus colegas de carreira que elas devem os seus empregos. Entretanto, não existe mulher, por mais humilde velha ou usada, que não lhe mereça uma demonstração exterior de consideração, uma dessas pequenas galantarias, uma dessas frases que eu associo com o temperamento gaulês, esse encanto francês, cerebral e falso que tão facilmente se evapora para se transformar em orgulho e em indolência mental, tal como os pensamentos franceses que tão rapidamente se perdem em moldes de areia, o esprit original cristalizando imediatamente em conceitos de onde se encontra ausente toda a sensibilidade. O omnipresente sexo que flutua sobre os seus pensamentos e as suas acções tem, contudo, um ar de desapego que o torna qualitativamente diferente das acções e dos pensamentos de um Capodistria, por exemplo, a quem muitas vezes encontramos na loja de Mnemjian à hora da barba. Capodistria tem uma maneira involuntária de feminilizar tudo aquilo de que se aproxima; sob o seu olhar, as cadeiras tornam-se dolorosamente conscientes da nudez das suas pernas. Penetra nas coisas. Sentado à mesa com ele, vi uma melancia fremir sob a carícia do seu olhar e senti vibrar as grainhas do seu ventre! As mulheres sentem-se como a ave diante da víbora em frente daquela cara estreita e chata, daquela língua que se move sem cessar sobre os lábios sumidos. Penso uma vez mais em Melissa: hortus conclusus, soror mea sponsor...
Regard dérisoire, diz Justine. Como se explica que você seja um de nós e entretanto..., esteja tão longe? Ela arranja os seus belos cabelos negros diante do espelho, com um cigarro a arder entre os lábios. Você é, evidentemente, um refugiado mental, visto que é irlandês, mas tem ainda que partilhar a nossa angoisse. De facto, o que ela procura surpreender é essa qualidade distintiva que procede não de nós mas da paisagem, os aromas metálicos que impregnam a atmosfera debilitante do lago Mareotis. Enquanto a escuto, penso nos fundadores da cidade, no Deus-Soldado no seu caixão de vidro, no corpo de comovente juventude na sua armadura de prata, descendo o rio até ao local onde se erguia o túmulo. Ou nessa grande cabeça quadrada, de negro, de onde emana um conceito de Deus, concebido no espírito da pura especulação intelectual: Plotino. É como se as preocupações desta paisagem convergissem num ponto fora do alcance da maior parte dos seus habitantes, numa região onde a carne, posta a nu pelo abuso das suas reticências finais, devesse submeter-se a uma preocupação infinitamente mais compreensiva; ou extinguir-se nessa espécie de esgotamento que as obras do Mouseion representam, os cândidos jogos dos hermafroditas nos jardins verdejantes da Arte e da Ciência. Poesia, desajeitada tentativa de inseminação artificial das Musas; metáfora de uma estupidez flagrante, da cabeleira de Berenice cintilando no céu nocturno por sobre a face adormecida de Melissa. Ah!, disse Justine uma certa vez, se ao menos houvesse algo de livre, algo de polinésico nesta devassidão em que vivemos. Ou mesmo de mediterrânico, devia ela ter acrescentado, porque as implicações de cada beijo seriam diferentes em Itália e em Espanha; aqui, os nossos corpos estavam feridos pelos ventos ásperos e esterilizantes que sopravam dos desertos africanos, e éramos obrigados a substituir o amor por uma ternura cerebral mais cruel, que, longe de repelir a solidão, só servia para exacerbá-la ainda mais. Até a própria cidade tinha dois centros de gravidade: o pólo real e o pólo magnético da sua personalidade; e, entre os dois, o temperamento dos seus habitantes dissolvia-se e esgotava-se em vãs descargas eléctricas». In Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria, 1957, Justine, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

domingo, 29 de janeiro de 2017

Justine. Quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell. «O seu velho comércio abrange os dois mundos, e algumas das suas melhores observações começam por esta frase: como me dizia Fulano ao dar o último suspiro»

jdact

«(…) Mais tarde, quando quase enlouqueci em tormentos e me encontrei pesadamente endividado para com Capodistria, passei a considerá-lo um companheiro menos agradável; e, certa noite, Melissa, meio embriagada, encontrou-se sentada em frente dele, diante do fogo, num tamborete baixo, tendo entre os dedos longos e pensativos a letra que eu tinha assinado, com a simples palavra pago escrita transversalmente, a tinta verde, numa caligrafia agressiva... São estas recordações que fazem sofrer. Melissa explicou: Justine poderia ter pago a tua dívida e isso não lhe causaria grande transtorno. Mas já basta que tenha o teu desejo: não quero que tenha, também, a tua gratidão. E depois, embora te não importes muito comigo, queria fazer alguma coisa por ti, e o sacrifício, afinal, não foi demasiado grande. Pensava que não ficarias muito triste por eu me deitar com ele. Não fizeste tu o mesmo por mim, quero dizer, não pediste dinheiro a Justine para pagar a clínica, as radiografias e tudo o mais? Mentiste-me a esse respeito mas eu descobri a verdade. Eu não podia mentir, eu nunca minto. Toma a letra, rasga-a: mas não voltes a jogar com ele. Tu não te podes ligar com um homem da sua espécie. E voltando a cara fez o simulacro de cuspir, como fazem os Árabes.
Da vida pública de Nessim, essas gigantescas e enfadonhas recepções, de início frequentadas apenas por homens de negócios, mas que mais tarde deram pretexto a tenebrosas conjuras políticas, não quero ocupar-me. Atravessando furtivamente o vestíbulo a caminho do estúdio, detinha-me para examinar o grande escudo de couro sobre a chaminé, onde se encontrava também um plano da mesa, para ver quem tinha sido colocado à direita e à esquerda de Justine. Durante algum tempo tentaram, gentilmente, fazer-me participar destas reuniões, mas eu pretextava cansaço e sentia-me feliz por poder dispor do estúdio e da imensa biblioteca. Mais tarde encontrávamo-nos como conspiradores e Justine lançava fora as máscaras de alegria, tédio e petulância que arvorava em sociedade. Desembaraçava-se dos sapatos e jogávamos cartas à luz da candeia. Quando ia deitar-se lançava um olhar ao espelho e dizia para a sua imagem: não passas de uma judia histérica e pretensiosa! O estabelecimento de Mnemjian, barbeiro, natural da Babilónia, ficava na esquina da Rua Fouad com a Rua Nebi Daniel, e era lá que todas as manhãs eu e Pombal nos encontrávamos reflectidos em frente dos espelhos vizinhos. Erguiam-nos ao mesmo tempo nas cadeiras e cobriam-nos com duas mortalhas brancas, como faraós mortos, para logo reaparecermos nos espelhos, como dois insectos numa montra. Era um garoto negro quem nos prendia as toalhas, enquanto o barbeiro ia misturando a espuma oleosa e perfumada numa grande tigela vitoriana, antes de aplicá-la em pequenos toques hábeis nas nossas faces. Depois de dar a primeira camada, deixava-nos de novo nas mãos do garoto para ir afiar a navalha numa enorme língua de couro que pendia, ao fundo da loja, no meio das fitas de papel mata-moscas. O pequeno Mnemjian é um anão cujo olhar violeta não perdeu ainda a candura infantil. E, contudo, ele é o arquivo da cidade. Se quisermos conhecer os ascendentes ou as posses de qualquer pessoa, não há quem melhor nos informe; conta-nos todos os pormenores enquanto afia a navalha, experimentando o fio nos pêlos hirsutos do antebraço. E o que ele não souber depressa o descobre. E sabe tanto sobre os mortos como sobre os vivos, posto que o hospital grego o utiliza para barbear e vestir as suas vítimas, antes de as abandonar aos gatos-pingados; é uma tarefa que ele desempenha com o zelo e o prazer de todos os da sua raça. O seu velho comércio abrange os dois mundos, e algumas das suas melhores observações começam por esta frase: como me dizia Fulano ao dar o último suspiro. Parece que tem muita sorte com mulheres e consta que arredondou uma pequena fortuna à custa das suas admiradoras. Mas há, também, as velhotas egípcias, mulheres e viúvas dos paxás, que ele visita regularmente para lhes compor o penteado. Segundo ele, essas senhoras já experimentaram tudo e, dando uma palmada na medonha giba que lhe carrega as costas, acrescenta orgulhosamente: isto excita-as. Entre outras coisas possui uma cigarreira de ouro, oferta de uma sua admiradora, onde guarda uma colecção de mortalhas soltas. O seu grego é deficiente, mas enriquecido pôr inesperadas imagens, e Pombal não consente que ele lhe fale em francês, embora domine esta língua muito melhor. Está, presentemente, alcovitando para o meu amigo, e sempre me admiram os súbitos assomos de poesia que ele põe na descrição das suas protégées. Debruçado sobre a face lunar de Pombal, dirá, por exemplo, enquanto a navalha começa a ranger sob a camada de espuma: tenho uma coisa para si, uma coisa muito especial. Pombal surpreende o meu olhar no espelho e volta rapidamente a cabeça com receio de que desatemos ambos a rir às gargalhadas. Emite um grunhido prudente. Mnemjian eleva-se ligeiramente na ponta dos pés e aproxima-se mais da orelha de Pombal, entortando os olhos». In Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria, 1957, Justine, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

A Cortesã. Educação Sentimental. Dora L. Mossanen. «Apesar de coberta, exala uma sensualidade muda, poderosa. Ele desliza o polegar pela minha face. O “chador” pode ocultar a força e as capacidades de uma mulher»

jdact

«(…) Estamos no equinócio da Primavera, Noruz, o Ano Novo persa. Na nossa mesa cerimonial podem ver-se os haft-seel, ou os sete s’s, que simbolizam o renascimento, a fertilidade e a riqueza. A fazer-nos companhia estão os fantasmas amigáveis da grand-mére é preciso ter olhos e ouvidos especiais para ver e ouvir os espíritos dizia madame Gabrielle, e tu, minha querida, possuis essas duas bênções. Uma vez tendo-se convidado para a cerimónia, pairam sobre a mesa e em seu redor, as suas silhuetas translúcidas reflectidas num espelho com moldura de prata e cujo significado é a vida. Rodopiam em torno das chamas das velas que, por seu turno, representam a luz, e empoleiram-se em moedas de ouro que simbolizam a riqueza. Lambem os bolos de trigo em busca de doçura, instalam-se em rebentos de trigo, jacinto e alho como forma de garantirem fertilidade, beleza e saúde. Evitando uma tigela de vinagre que representa a paciência, descrevem círculos em volta das maçãs de água de rosas que, por seu turno, representam a saúde, e beijam as cascas pintadas dos ovos, os bolos de arroz, e as minhas faces. Não estamos sós nem nos sentimos sozinhos, eu e Cyrus. Aninhados na otomana, corados devido ao lume que arde no fogão bojudo e a um jantar composto por peixe branco fumado e arroz aromatizado com ervas. As vozes dos muezzin que chamam para a oração do fim da tarde nas mesquitas da cidade ecoam pelas montanhas. O aroma do chá de jasmim é reconfortante. Aproxima-te…, jounam, murmura Cytus, ao mesmo tempo que mergulha a mão nos meus caracóis da cor do cobre, a língua a deslizar-me pelo pescoço. Quero que me conheças como nunca mais ninguém o fez. A noite passada..., que perigo foi mergulhar no teu perfume de âmbar cinzento. Recita-me um poema, peço. Ele então conta-me a história de amor de Laila e Majnun, de Nizami, o poeta do século XII, seguida da lenda de Khosrow e Shirin, tirado do épico do século X, o Shahnameh, de Ferdowsi. Perco-me no marulhar da sua voz. Ele embarca numa viagem mística aos corações dos amantes antigos e aos poemas fatalistas do Sufi Saadi. Porque será que o mito e o romance persa nunca são recompensados? Começo a encontrar paz na solidão das montanhas, uma partilha que culmina na união perfeita que toma as palavras supérfluas. Ele fecha o livro e descansa no meu colo. Entrega-me uma caixa, e os seus olhos alongados buscam os meus. A moldura de marfim vem da África do Sul. Mas a fotografia é de Antoin Sevruguin, um russo educado na Pérsia. Sinto-me atraída pela graça e pelo mistério da imagem da Mulher Velada com Pérolas, o perfil sedutor coberto por camadas de renda. Usa uma coroa feita com moedas de ouro; o pescoço está enfeitado com pérolas. Apesar de coberta, exala uma sensualidade muda, poderosa. Ele desliza o polegar pela minha face. O chador pode ocultar a força e as capacidades de uma mulher, tornando-a mais agradável aos olhos da nossa cultura. Pode constituir um acto de libertação observar os outros sabendo que ninguém nos conhece ou sabe para quem estamos a olhar. Nunca usarei um chador..., nem mesmo para ti. Trata-se de uma forma de obedecer às restrições públicas sem sucumbir às suas limitações. Aqui, nem sempre é uma questão de escolha.
Se as montanhas acabarem por se transformar na minha casa, talvez. Nesse caso, vamos inventar um passado e uma história para a nossa casa. Pega no material de escrita, o papel de tornassol e a tinta azul-índigo. Encantam-me os subterfúgios excêntricos com que Cyrus desafia o mundo, a camisa aberta, a cor da tinta com que escreve, o aparo largo da caneta, tão ousada quanto um grito. Deixa tudo bastante claro a meu respeito, jounam. Diz aos meus inimigos que se mantenham afastados de quem amo. Deixo-me maravilhar pelo seu barítono profundo e pelo poder da sua imaginação, e ouço-o evocar um tempo em que o vulcão Damavand não se deixara ainda cair na sua letargia fumarenta, um tempo em que as pedras que sulcavam o sopé da ravina de Rostam ainda não haviam sido polidas pelos séculos, um tempo em que as estrelas colidiam entre si, e os oceanos ainda não tinham amadurecido ao ponto de executarem a sua presente sinfonia. Mesmo então, há tanto tempo, havia um homem que sonhava construir uma casa de pedra no topo dos picos nevados das montanhas para a sua noiva parisiense. Junto-me à história e embelezo este universo de antanho com os meus próprios fios e sabores, contribuindo assim para validar este refúgio solitário, ligando-nos ainda mais a ele. Evoco uma terra distante onde o demónio prospera malgrado a abundância de bagas e ervas, onde os espíritos se ocultam nas folhas outonais e nas lágrimas. E nos prazeres intensos, penso. Vem, minha esposa adorada, vem passear comigo no meu passado». In Dora Levy Mossanen, A Cortesã, 2005, tradução de Lucília Rodrigues, Difel, 2006/2007, ISBN 978-972-290-860-3.

Cortesia de Difel/JDACT

O Mistério das Lágrimas da Virgem. Alana White. «Mestre Guid’Antonio, bem-vindo a casa. Obrigado, agradeceu Guid’Antonio, abraçando Cesare e dando-lhe uma palmadinha nas costas. Mas o que é isto? Gesticulou em direcção à fechadura»

jdact

«(…) Tinha acompanhado Giuliano até casa, no Palácio Medici, através de ruas fedorentas e vielas abandonadas, enquanto outros apoiantes dos Medici perseguiam os conspiradores e os abatiam nas ruas, como porcos. E agora? Perguntara-se Guid’Antonio. E agora? Tinha recebido a resposta rapidamente sob a forma de um cargo de embaixador na corte francesa. Era a sua recompensa pela amizade firme e a lealdade para com os Mesdici, que era a primeira família de Florença, embora oficiosamente. Mas seria a recompensa realmente merecida? De vez em quando, tentava contar a Lorenzo o que acontecera naquele domingo sangrento. E de cada uma das vezes encerrara as palavras dentro de si, consumido pela culpa. Desde a morte de Giuliano na catedral, o rosto de Lorenzo Medici era mais atento e a pele cor de azeitona tornara-se sobrenaturalmente pálida. Na verdade, todos os homens tinham os seus segredos.
Os seus aposentos estavam agora mais quentes, a atmosfera bastante mais leve, embora do lado de lá das janelas o céu sobre Plessis-les-Tours parecesse sombrio e húmido. Era de manhã. Dezanove de Junho de 1480. Daí a instantes o seu sobrinho, Amerigo Vespucci, entraria nos aposentos ricamente decorados que o rei Luís XI atribuíra a Guid’Antonio, muito animado, com entusiasmo e energia, ansioso por começar a viagem através dos Apeninos que desciam até à península de Itália e até à Toscana. Andiamo, tio Guid’Antonio! Vamos! Mal posso esperar por deixar este tempo francês que nos encolhe as partes baixas! E foi assim que o embaixador Guid’Antonio Vespucci balançou os pés para fora do colchão de penas e pegou na camisa e nas calças de viagem. Ao levantar-se, viu-se a si próprio e a Amerigo a sair para a chuva que caía lá fora e a correr até aos estábulos, onde Amerigo já tinha os dois cavalos selados e à sua espera. Viu-se a sacudir o manto e a puxar o capuz para cima da testa, com as bainhas oleadas a pender sobre o rosto. Desconfortável e com o espírito atormentado, viu o chão a mover-se por baixo de si enquanto olhava de relance para as nuvens que escureciam e cavalgou pela tempestade dentro.

Florença, três semanas mais tarde…
Guido’Antonio sentia-se como um fantasma a pairar junto ao portão do pátio, nas etéreas horas que antecediam o alvorecer. Mergulhadas na neblina, as oficinas dos fiandeiros, dos tintureiros e dos construtores de teares que se alinhavam na Borg’Ognissanti, a Rua de Todos os Santos, estavam silenciosas e as águas dos moinhos paradas. O único som que se ouvia era o eco débil dos cascos dos cavalos a bater nos seixos molhados da estrada, enquanto um cansado mas satisfeito Amerigo levava Flora e Bucephalus para o outro lado do Palácio Vespucci, em direcção aos estábulos da família. Mas não, afinal não estava assim tudo tão silencioso, nem tão desprovido de movimento. Do local onde estava parado, como um vulto hesitante junto do portão de ferro forjado, conseguia ver o fontanário no jardim do palácio e ouvir o suave gorgolejar da água que escorria pela boca do leão de pedra. De cada um dos lados do portão ardiam tochas. Sob a 1uz difusa, procurou a chave na bolsa. Por entre o tilintar de moedas, os seus dedos encontraram a chave; introduziu-a na fechadura apenas para constatar que não funcionava. Deu-lhe uma volta, retirou-a, soprou-lhe e tentou girá-la novamente na fechadura, sem sucesso. Oh, Deus, murmurou. Mestre Guid’Antonio, murmurou o vulto, afastando-se das sombras do jardim. Estou aqui. Só um momento, por favor. Não era Deus, mas o criado de Gluid’Antonio, Cesare Ridolfi, que destrancou a fechadura e abriu o portão fazendo ranger as dobradiças. Um sorriso caloroso iluminou o rosto do jovem homem.
Mestre Guid’Antonio, bem-vindo a casa. Obrigado, agradeceu Guid’Antonio, abraçando Cesare e dando-lhe uma palmadinha nas costas. Mas o que é isto? Gesticulou em direcção à fechadura, questionando-se que força sobrenatural teria murmurado ao ouvido de Cesare Ridolfi que o mestre Guid’Antonio e Amerigo chegariam a casa tão cedo naquele dia. Mais do que isso, que Guid’Antonio precisaria de que lhe abrisse o portão do pátio. Mudou, disse Cesare. Como tantas outras coisas. Abriu os braços, abarcando o alvorecer e as estrelas que apareciam por detrás das nuvens escassas. Mas agora já está em casa. Quer tomar um banho para começar este dia interminável? Interminável? Guid’Antonio sentia-se demasiado cansado para fazer perguntas. Não. Vou começar por ver a minha mulher. Ah. Com um sorriso ligeiro, Cesare voltou a mergulhar nas sombras de onde tinha saído». In Alana White, O Mistério das Lágrimas da Virgem, 2012, Marcador Editora, 2013, ISBN 978-989-847-096-6.

Cortesia de MarcadorE/JDACT

sábado, 28 de janeiro de 2017

Recensão. Maria Ângela Beirante. Ao serviço da República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora, paradigma dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535). António M. Costa. «Evangelhos em maneira que por sua mingoa e negligencia a dita Republica nem pouo desta uilla não receba detrimento nem perda alguma»

Cortesia de wikipedia

«(…) Segundo nos é dado a conhecer, o regimento eborense, transportado para a Covilhã pelo mercador Jorge Martins após o assentimento de Luís, compõe-se de uma vintena de documentos atestando os privilégios alcançados pelos mesteres de Évora durante um período situado entre os reinados de Duarte I e de João III. A maior parte dos diplomas corresponde a benefícios dispersos outorgados pela coroa das mais diversas naturezas, de que são exemplo os mais antigos, que datam das Cortes de Leiria-Santarém de 1434, relativamente à generalização a todos os mesteres do pronunciamento na câmara sobre a justa valia dos produtos a almotaçar e à reafirmação a todos os oficiais da cidade para assegurarem carniceiros em número suficiente para garantir carne em abastança para o povo, assim como almotacés para a distribuir equitativamente. Porém, outros documentos há mais estruturantes, segundo a autora, como é o caso daquele que data de 1 de Agosto de 1451, atestando uma reunião em que vinte e quatro mesteirais, em representação dos mesteres da cidade, constituíram um regimento para ordenar novos estatutos e eleger seis pelouros (por cada seis anos, em cada qual exerceriam um secretário e um tesoureiro) para administrar a bolsa que pagaria o serviço de escolta de prisioneiros e o de transporte de dinheiros régios. Mas, como encerram as disposições, aqueles procuradores não se limitavam a administrar a bolsa, estando igualmente investidos na função, institucionalmente (bem) mais importante, de representação em Cortes, fazendo ouvir a voz do povo em paralelo aos antigos procuradores concelhios, a presença dos procuradores do povo miúdo de Évora nas Cortes de Lisboa de 1439 leva Maria Ângela Beirante a sustentar que esta prerrogativa dos mesteirais eborenses remontaria, no mínimo, ao governo de Duarte I. Nesta esteira, outro diploma de suma importância, que cabe aqui destacar, será aquele que foi apresentado nas Cortes de Lisboa de 1459 pelo povo miúdo, através do qual os mesteirais obtêm de Afonso V o direito de estar na câmara em vereação com os oficiais do concelho, passando a intervir (permanentemente) no governo local. Contudo, como é dado a conhecer pelos demais diplomas, estas conquistas dos homens dos mesteres foram objecto de grande resistência por parte da oligarquia urbana, que nas Cortes de Évora de 1490, quando João II precisou do apoio dos procuradores das vilas e cidades para o casamento do príncipe herdeiro, conseguiu da coroa que os procuradores do povo deixassem de estar em vereação, situação que só será revertida completamente após alvará de João III, em 22 de Julho de 1529.
Ao abordar a implantação do regimento na Covilhã, em cuja câmara o instrumento foi recebido a 14 de Fevereiro de 1535, Maria Ângela Beirante detalha-nos o interessante acto formal da eleição dos Vinte e Quatro dos Mesteres na vila beirã, na presença do juiz de fora (em representação do infante) e após chamada por pregão. Para uma representação equitativa, a autora salientou como se dispôs que os profissionais dos ofícios fossem escolhidos em proporção aos mesteres da vila, resultando da eleição: quatro mercadores, dois paneiros, dois tecelões, dois tecelões, dois tintureiros e tosadores, um surrador, dois ferreiros e ferradores, um ourives, três almocreves, um moleiro, um pedreiro e um oleiro. Ficamos ainda a saber como os vinte e quatro eleitos, que juraram sobres os Evangelhos em maneira que por sua mingoa e negligencia a dita Republica nem pouo desta uilla não receba detrimento nem perda alguma, passaram a votar os dois procuradores que os representariam na vereação naquele ano, bem como os pares que lhes sucederiam nos cinco anos seguintes, note-se que se previa, para evitar vícios ou corrupções, a tiragem à sorte do pelouro que ia ser atribuído à dupla em exercício no início de cada ano. Embora só conheçamos registos de eleição até 1552, a autora mostra-nos como não tardou em manifestar-se a estrutural oposição da oligarquia urbana, dinâmica essa que, de resto, se perpetuaria durante muito tempo, o que Maria Ângela Beirante chega a atestar com recurso a documentação das Cortes de 1641.
Por último, somos levados por uma caracterização económico-social dos fundadores da instituição dos Vinte e Quatro da Covilhã. Analisando a lista dos mesteirais presentes na eleição inicial de 1535, bem como o número de representantes eleitos por sectores profissionais, a autora sustenta detalhadamente a preponderância do sector do têxtil, da produção à comercialização, salientando o importante papel que os cristãos-novos terão assumido nesta área, teria mesmo partido dos profissionais deste ramo, de acordo com a mesma interpretação, a solicitação do regimento ao infante Luís. Por oposição, Maria Ângela Beirante destaca pela fraca representatividade nos primeiros Vinte e Quatro a pouca expressão de alguns mesteres na vila, como sucedia ao nível dos couros e dos metais, assim como na alimentação, com estas necessidades a serem supridas pelos almocreves, cujo grupo apresentava até alguma dimensão. Na esteira da autora, certo é que a partir de 1535, e até pelo menos o terceiro quartel do século (aquando da grande perseguição inquisitorial), a Covilhã alcançou o seu auge na transformação e venda de produtos da área dos têxteis, tornando-se uma referência no contexto de toda a comarca e do próprio reino. Em jeito de conclusão, podemos afirmar com segurança que o livro Ao serviço da República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora, paradigma dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535), de Maria Ângela Beirante, veio fazer luz no quadro historiográfico nacional no que diz respeito à investigação sobre os mesteirais na Idade Média. Tomando por objecto as urbes de Évora e da Covilhã, aqui relacionadas pelo regimento dos Vinte e Quatro dos Mesteres, a autora traçou, gizou um estudo bastante completo, com abordagens de natureza económica, social e institucional em torno dos profissionais dos ofícios entre os finais da medievalidade e os alvores da Idade Moderna. Estruturado com clareza, o trabalho apresenta uma escrita simples ao nível do texto, tantas vezes acompanhado de quadros que sistematizam a informação tratada, facilitando assim assimilação da matéria pelo leitor. Para o público académico, em particular aquele que investiga nas áreas da história urbana, económica ou social, serão certamente bons pontos de partida as imensas notas de rodapé que sustentam o texto e que remetem para uma plêiade de fontes, boa parte delas de arquivos nacionais e municipais, para além de um vasto conjunto de estudos, portugueses e estrangeiros.
Em suma, através desta metódica investigação ficou claro como a afirmação dos mesteirais eborenses conduziu, no século XV, à obtenção de um amplo conjunto de privilégios políticos, garantidos juridicamente pela coroa, os quais seriam adoptados pelos homens dos ofícios da Covilhã, após o assentimento do infante Luís, no início do segundo quartel de Quinhentos, quando o protagonismo dos seus mesteres reclamava também uma maior intervenção institucional. Em boa medida pelo seu papel económico, como se demonstrou com todo o rigor, os mesteirais lograram impor-se, numa dinâmica que os opunha tendencialmente às oligarquias urbanas, conseguindo assim numa e noutra comunidade o almejado assento nas vereações municipais e, mais ainda, a representação do povo miúdo em Cortes. Por conhecer ficou, como concluiu a autora, por falta de fontes, a forma, decerto maleável, como se terá aplicado o regimento dos Vinte e Quatro eborense na vila beirã, tendo em conta as diferenças na organização dos trabalhos: enquanto na cidade alentejana os mesteirais eram essencialmente fabricantes, como os profissionais do sector do couro, na Covilhã o grosso dos homens dos ofícios poderia ser ou não corresponder a fabricantes, como era o caso dos mercadores e dos paneiros, não devendo por isso estar sujeitos às mesmas restrições lucrativas. Porém, com este estudo, para além dos contextos estudados, espera-se chamar à atenção da historiografia nacional para a importância dos homens das artes mecânicas, que, de acordo com a filosofia medieval, eram considerados como parte integrante dos pés que sustentavam a sociedade e que, como tal, carregavam uma missão importante na consecução do bem-comum». In António Martins Costa, Recensão: Maria Ângela Beirante. Ao serviço da República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora, paradigma dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535), Lisboa, Centro de Estudos Históricos, 2014, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Centro de História da Sociedade e da Cultura, IEM, Revista Medievalista, Nº 20, Julho-Dezembro 2016, ISSN 1646-740X.

Cortesia de IEM/FCSH/NOVA/FCT/JDACT

Recensão. Maria Ângela Beirante. Ao serviço da República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora, paradigma dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535). António M. Costa. «Esta extraordinária expansão nos alvores da modernidade deveu-se em boa medida, segundo este estudo, ao crescimento da já importante comunidade judaica local»

Cortesia de wikipedia

«(…) Já no segundo capítulo do livro somos transportados para a Covilhã medieval, acerca da qual Maria Ângela Beirante começa por traçar, com recurso a múltiplos documentos e estudos conhecidos, um interessante enquadramento histórico com início no período da Reconquista, no século XII. A autora estabelece desde cedo um paralelismo com a cidade de Évora, cujo foral servira de modelo ao primeiro da vila beirã, outorgado por Sancho I em 1186, tendo em conta uma idêntica realidade económico-social, então relacionada com a transumância. Dotada de um vasto termo, e animada em boa parte pelo comércio fronteiriço praticado nas suas feiras, a Covilhã é-nos apresentada como uma comunidade em franca consolidação até aos finais da Idade Média, evolução essa corroborada pelos estudos acerca das suas estruturas defensivas e religiosas, além das investigações de natureza institucional. Mas, como explica Maria Ângela Beirante, a notoriedade alcançada no século XV pela vila beirã, onde a coroa, a avaliar pelas inquirições de 1395, era grande proprietária, fez com que se tornasse objecto de sucessivas doações a grandes casas senhoriais, determinando o seu futuro: após a conquista de Ceuta de 1415, a Covilhã passou a integrar o senhorio do infante Henrique, prosseguindo junto da casa de Viseu até à decapitação do duque Diogo, em 1483, transitando para o património de Manuel I, ainda duque de Beja.
Todo este processo de consolidação da vila beirã baixo-medieval, nas palavras da autora, teve como motor os mesteirais. Apesar da escassez de fontes, foi possível obter relativamente ao período balizado entre os séculos XIII e XV, uma vez mais, com base quer nas referências directas da documentação, quer nos indícios dos topónimos, uma pequena amostragem de quase três dezenas de homens dos mesteres, a qual nos sugere um predomínio dos profissionais das peles e do couro (com oito mesteirais identificados, decerto relacionados com a economia ganadeira e pastoril da geografia serrana), seguidos pelos mercadores (seis), pelos mesteirais da alimentação (seis) e, por fim, pelos trabalhadores dos metais (três) e do barro (três). Seria, porém, entre os finais de Quatrocentos e as primeiras décadas da centúria seguinte que a Covilhã acusaria uma expansão social e económico vertiginosa, conforme atesta a autora ao estabelecer nexos entre a inquirição de Manuel I de 1496, o foral manuelino de 1510 e o numeramento de João III de 1527. Na mira dos indicadores fiscais e demográficos daquelas fontes somos levados a constatar dados impressionantes como, por exemplo, os 223 256 reais recolhidos ao nível dos direitos régios naquela vila nos finais do século XV, colocando-a no segundo lugar de toda a Beira, à frente da Guarda e de Castelo Branco; ou os 3.500 habitantes urbanos e os 12.964 moradores rurais que residiam no concelho no início do segundo quartel de Quinhentos, fruto de um crescimento populacional de 71 % em trinta e um anos, que convertia a Covilhã no município no mais povoado de toda a comarca.
Esta extraordinária expansão nos alvores da modernidade deveu-se em boa medida, segundo este estudo, ao crescimento da já importante comunidade judaica local, num primeiro momento, após a expulsão castelhana de 1492, acabando os seus membros por se baptizarem e adoptarem nomes cristãos na Covilhã, na sequência da conversão forçada das minorias em Portugal em 1497. À situação fronteiriça, a vila aliava condições comerciais atractivas como a organização de conhecidas feiras e a isenção de portagens para os seus moradores por todo o reino, o que, na interpretação da autora, decerto terá convencido os judeus, entretanto cristãos-novos, que ali assumiriam um papel relevante no desenvolvimento dos mesteres da área do têxtil, em particular. Só tendo em conta esta realidade da vila, populosa e pujante, se percebe o alcance da sua doação ao infante Luís por seu irmão João III, justamente em 1527, num claro reconhecimento pelo papel político e militar ao serviço do reino daquele que ficou conhecido, nas artes e nas ciências, como um verdadeiro príncipe da Renascença.
Por fim, o terceiro capítulo do livro conduz-nos à observação do regimento dos Vinte e Quatro de Évora, que em Janeiro de 1535 os mesteirais covilhanenses solicitam a Luís por modelo a instituir na vila beirã, na esperança de obterem um reconhecimento político condizente com o seu protagonismo económico. Obtido o assentimento do infante, como atesta o alvará de 30 do mesmo mês, aqueles estatutos vinham confirmar, no dizer de Maria Ângela Beirante, a familiaridade de foros e costumes entre as duas localidades, a par da sensibilidade e o pragmatismo de Luís em relação à coisa pública, por um lado, e da preferência da forma de organização dos mesteres de Évora sobre outras vilas e cidades pelos profissionais covilhanenses, por outro lado. É precisamente para melhor compreensão do decalque do Regimento dos Vinte e Quatro dos Mesteres da cidade alentejana para a Covilhã, com todos as liberdades e garantias que significava, que a autora trata separadamente o regimento, no contexto de Évora, para depois abordar a instituição do mesmo na vila beirã e a eleição dos primeiros Vinte e Quatro». In António Martins Costa, Recensão: Maria Ângela Beirante. Ao serviço da República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora, paradigma dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535), Lisboa, Centro de Estudos Históricos, 2014, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Centro de História da Sociedade e da Cultura, IEM, Revista Medievalista, Nº 20, Julho-Dezembro 2016, ISSN 1646-740X.

Cortesia de IEM/FCSH/NOVA/FCT/JDACT

Recensão. Maria Ângela Beirante. Ao serviço da República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora, paradigma dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535). António M. Costa. «… o patrocínio do infante alcançaram em 1535, nas palavras da autora, um estatuto de maioridade»

Cortesia de wikipedia

«Esboçando um breve enquadramento historiográfico sobre o estudo das corporações de ofícios, constatamos facilmente como se trata de um tema que foi votado a um enorme desinteresse durante o século XIX e boa parte do XX, em grande medida devido a preconceitos ideológicos e políticos: numa primeira fase, para os seguidores do liberalismo económico, que triunfou na Europa de Oitocentos, o modelo corporativo, associado ao Antigo Regime, era um alvo a abater; mais tarde, a partir da década de 1930, com o advento de regimes totalitários que defendiam um certo corporativismo social, a matéria, pela sua conotação, tornou-se igualmente indesejada. Porém, a partir da década de 1960, como sugeriu Maria Helena Coelho, a historiografia assumiu uma nova postura com o impulso da Nouvelle Histoire, desde logo pela renovação dos estudos de história económica, que se debruçaram sobre a produção de bens, assim como da história social, que deitaram um novo olhar sobre os seus produtores que, pelo menos desde o século XIII, viviam nas cidades agrupados em associações profissionais. Nessa sequência, o principal contributo foi-lhe prestado pelos estudos de história urbana, uma vez que foi com o desvendar deste mundo que se trouxe à luz do dia o valor da produção industrial e a importância dos mesteres na vida das cidades medievais. O tema da organização do trabalho e dos trabalhadores foi progressivamente adquirindo autonomia, tornando-se uma das matérias fracturantes da investigação histórica a partir da década de 1980 e, sobretudo, de 1990. A historiografia portuguesa acompanhou, grosso modo, estas tendências universais. Por meados do século XX quase só se contavam os estudos dos mesteres, de natureza institucional, de Lisboa, Porto e Coimbra, respectivamente da autoria de Marcelo Caetano, Torquato Sousa Soares e J. M. Teixeira Carvalho. Nos anos de 1960, a recuperação do tema dos mesteirais pela história económica e social deixou a sua marca através de AH Oliveira Marques, na sua inovadora obra A Sociedade Medieval Portuguesa: aspectos da vida quotidiana, assim como nos seus artigos Mesteirais e Indústria na Idade Média, onde Jorge Borges Macedo escreveu a entrada, de igual valor, Indústria na Idade Moderna. No final da década seguinte, em 1978, destacou-se o trabalho de Maria José F.Tavares que ousou perspectivar a importância dos mesteirais no contexto da crise de 1383. Apesar da publicação nos anos 80 de várias histórias gerais que consagraram algumas páginas aos homens dos mesteres, conforme se verificou também com o advento de estudos sobre algumas urbes, foi preciso esperar pela década seguinte para lograr contributos significativos. De facto, nos anos de 1990 evidenciaram-se diferentes trabalhos que vieram fazer luz sobre os ofícios medievais, como os de Maria Helena C. Coelho, em relação ao trabalho nas urbes, de Ana Maria Rodrigues e Saul António Gomes, acerca do artesanato, e de Luís Miguel Duarte, em redor da actividade mineira. Parecem essas sementes ter frutificado no início do novo milénio com o interesse pelo estudo da produção industrial e da organização dos mesteres, conforme mostram os trabalhos de Luís Miguel Duarte, Maria da Conceição F. Ferreira e Amélia Polónia. Nessa esteira, são sintomáticos os reflexos ao nível das teses académicas, como mostram os recentes trabalhos de doutoramento de Arnaldo Sousa, intitulado Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: o Porto, c. 1320 – c. 1415 (Universidade do Minho, 2009), e o de Joana Sequeira, designado Produção Têxtil em Portugal nos finais da Idade Média (Universidade do Porto, 2012). Os mesteirais parecem, definitivamente, ganhar espaço na investigação científica nacional.
É perante este quadro historiográfico que Maria Ângela Beirante se propõe acrescentar conhecimento com a obra Ao serviço da República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora, paradigma dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535). Como a autora refere na introdução, o livro surgiu na sequência da descoberta (inesperada), na Torre do Tombo, de um conjunto documental apenso a um caderno de capítulos especiais da Covilhã, relativo às Cortes de João IV de 1645-1646. Trata-se do regimento dos Vinte e Quatro dos Mesteres da vila da Covilhã, que data de 1535, correspondente a uma reprodução dos Vinte e Quatro dos Mesteres da cidade de Évora, de meados da centúria anterior. É em grande medida em torno desta documentação, que comporta um conjunto de diplomas atestando os privilégios alcançados pelos homens dos ofícios covilhanenses, acompanhados por vários autos de eleição, que a autora assume como objectivo da obra uma dupla abordagem das associações profissionais de Évora e da Covilhã nos séculos XV e XVI: por um lado, uma observação de carácter institucional, permitindo descortinar a importância política alcançada por aquelas organizações; por outro lado, tendo em conta as suas similitudes e diferenças, compreender o papel económico-social que desempenharam nas respectivas urbes.
Para a persecução daqueles propósitos, Maria Ângela Beirante estruturou o seu livro, a par da introdução e da conclusão, em três capítulos, seguidos de uma extensa bibliografia e de um valioso apêndice documental, onde se encontra transcrito o vasto conjunto documental recentemente encontrado do regimento dos Vinte e Quatro. A organização das partes do livro pressupõe, desde logo, uma sequência lógica, que nos apresenta antes a realidade das duas urbes para, depois, tratar o regimento: no primeiro capítulo, intitulado Os mesteres de Évora na Idade Média, a autora sugere uma observação dos trabalhos dos mesteirais eborenses, cujo envolvimento na estrutura institucional do concelho nos finais da medievalidade serviria de modelo aos mesteres da Covilhã; no segundo capítulo, designado A Covilhã medieval, uma entidade urbana em ascensão, propõe-se o acompanhamento da evolução da vila beirã desde a Reconquista prestando especial atenção aos mesteres que a caracterizavam para, ao tempo do infante Luís, se compreender a outorga do regimento dos Vinte e Quatro; no terceiro e último capítulo, O Regimento dos Vinte e Quatro dos mesteres de Évora e a sua adopção pelos mesteres da Covilhã, Maria Ângela Beirante sugere um olhar sobre a fonte inédita, acompanhando numa primeira fase a conquista precoce de direitos por parte dos mesteirais eborenses para, posteriormente, gizar um quadro socioeconómico dos mesteirais da Covilhã que com o seu empenho e o patrocínio do infante alcançaram em 1535, nas palavras da autora, um estatuto de maioridade. Façamos uma análise, ainda que de forma breve, aos resultados do trabalho por capítulos.
No primeiro capítulo, a autora convida-nos a recuar à cidade eborense dos finais da Idade Média tomando por fontes, com balizas entre os meados do século XIII e os finais de Quatrocentos, milhares de documentos, essencialmente oriundos das chancelarias régias ou do arquivo municipal daquela urbe. Maria Ângela Beirante começa por identificar aqueles que, à luz da mentalidade medieva, estavam destinados a executar o trabalho braçal, por oposição à oligarquia urbana, conseguindo assim categorizar quase 3.000 homens por sectores de actividade, com os seus cálculos a sugerirem desde logo um claro predomínio do ramo secundário (70,4 %) sobre o primário (14,8 %) e o terciário (14,8%). Procurando-se conhecer esta grande parcela de mesteirais, classificaram-se mais de 2.000 por profissões, permitindo desvendar com base nas referências directas dos documentos e nas marcas da toponímia a expressividade: por um lado, dos seus ramos de ofícios, destacando-se a área transformadora do couro; por outro lado, dos respectivos credos (cristãos, judeus e mouros), a partir dos quais, pese a supremacia dos seguidores de Cristo, se conseguem estabelecer culturalmente relações das minorias com determinados mesteres. A caracterização dos homens dos ofícios de Évora é ainda completada com o estudo do regimento tardo-medieval das procissões daquela urbe. Conforme nos é mostrado, aquele regimento espelha, pela ordem do cortejo, a forma como a sociedade se via a si mesma, com os mesteirais, abaixo da oligarquia citadina, a ocuparem hierarquicamente os lugares segundo critérios de especialização e competência técnica, clientela mais ou menos restrita, valor da matéria-prima trabalhada ou oferta de mão-de-obra. Foi justamente perante uma elite urbana de oficiais, paladina da garantia do abastecimento da urbe, em prol de uma ideia de bem comum, que os mesteirais viram as suas actividades objecto de controlo e regulação: primeiro, pelos almotacés, já datados do século XIII; depois, pela magistratura dos vereadores, ali instituída durante o governo de Pedro I; por fim, a partir do reinado seguinte, juntar-se-iam os vereadores, num claro processo de complexificação administrativa local. Maria Ângela Beirante defende que esta tendência aristocratizante do governo da urbe, com cada vez mais olhos postos na vigilância dos mesteirais, conduziu à produção de completos regulamentos que enquadravam o funcionamento das suas actividades. Porém, como demonstra a autora, os mesteres mais estruturados conseguiam, ainda que bastante condicionados pela oligarquia, ir tomando parte na elaboração desses diplomas através dos seus vedores ou simples procuradores junto do poder municipal, sinal das suas aspirações políticas. São disso exemplo as chamadas Antigas Posturas, de finais do século XIV, e o Regimento da Cidade, das primeiras décadas de Quatrocentos, cujos índices versam em boa medida sobre o controlo de qualidade e o tabelamento de preços e salários dos mesteirais que, como nos é dado a conhecer, alcançam sectores tão distintos como: couros, alimentação, metais, têxteis, vestuário, construção, barro, espartaria e cestaria, cera e sebo e água e combustíveis». In António Martins Costa, Recensão: Maria Ângela Beirante. Ao serviço da República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora, paradigma dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535), Lisboa, Centro de Estudos Históricos, 2014, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Centro de História da Sociedade e da Cultura, IEM, Revista Medievalista, Nº 20, Julho-Dezembro 2016, ISSN 1646-740X.

Cortesia de IEM/FCSH/NOVA/FCT/JDACT

Recensão. Artur Rocha. A Muralha de Dinis I e a Cidade de Lisboa. Fragmentos Arqueológicos e a Evolução Histórica. Paulo Almeida Fernandes. «… um plano integrado para todo este património, no qual se inclua ainda a Cerca Fernandina e as sondagens mais ou menos isoladas…»

Cortesia de wikipedia

«(…) O segundo projecto iniciou-se mais tarde, mas os primeiros resultados são bastante animadores. Na verdade, há muito tempo que se vem investigando arqueologicamente o Castelo de São Jorge, sendo de elementar justiça destacar o trabalho continuado de Alexandra Gaspar e Ana Gomes na Praça Nova, ao abrigo do Projecto Integrado do Castelo de São Jorge, cujos resultados levaram à definição de uma área arqueológica visitável e do Núcleo Museológico do Castelo de São Jorge. Neste momento, a investigação sobre a fortaleza prepara-se para entrar numa nova fase. Estão em curso projectos académicos de investigação destinados a estudar a fortificação na fase muçulmana, para a qual foi essencial a recente leitura de Carmen Barceló de uma inscrição islâmica do Museu de Lisboa, e a resgatar abundante informação documental inédita sobre a história e o restauro do monumento. Paralelamente, o estudo físico das muralhas e torres do castelo está a revelar-se uma verdadeira surpresa, como se comprova pela leitura do esgrafito que alude ao terramoto de 1356, recentemente efectuada por Bernardo Sá Nogueira, e pelos muitos materiais de várias épocas que se encontram incorporados nos muros, formando parte dos seus enchimentos.
Sendo o Castelo de São Jorge um monumento cuja autenticidade tantas vezes se questiona, pela radicalidade da intervenção pretensamente restauradora realizada entre 1938 e 1942, intervenção, de resto, que carece de um estudo monográfico rigoroso, estas descobertas representam novos motivos para o desenvolvimento de um plano de investigação integral do conjunto monumental, ao mesmo tempo que transmitem a sensação de que se deve voltar ao ponto de partida e começar a estudar o castelo do princípio, sem aceitar pré-conceitos acerca da originalidade das suas parcelas, do carácter inventivo do restauro ou da profundidade com que se afectou o subsolo e os seus estratos arqueológicos. Por estes motivos, importa que, em paralelo com o estudo documental, fotográfico e iconográfico do restauro, se possam desenvolver projectos complementares de diagnóstico e de caracterização. É essencial que se promova um levantamento exaustivo dos paramentos das muralhas e das torres e que se complete esse trabalho com uma análise de arqueologia da arquitectura. E é também importante que a arqueologia convencional volte ao topo da colina, porque a área arqueológica da Praça Nova é um dos motivos de atractividade do castelo, mas também porque há um imperativo científico no estudo de zonas potencialmente relevantes, em particular associadas aos alicerces de alguns sectores do sistema defensivo e de outras parcelas da alcáçova.
Neste cenário, o Instituto de Estudos Medievais desempenha já papel importante, tendo sido firmados protocolos com a EGEAC (empresa gestora do Castelo de São Jorge) para permitir investigações de mestrado e de doutoramento sobre a alcáçova medieval de Lisboa (2014), tendo havido já sessões de debate e de transferência de conhecimento, como o 1.º Workshop sobre a alcáçova e o castelo de Lisboa (Junho de 2015) e prevendo-se mais acções num futuro próximo.
Habituámo-nos a caracterizar o sistema defensivo de Lisboa nos seus três monumentos-etapas fundamentais: Castelo de São Jorge; Cerca Velha e Cerca Fernandina. Mas nem essas estruturas funcionam de forma isolada, nem são o resultado de campanhas construtivas temporalmente unitárias, nem, tão pouco, são os únicos elementos de um sistema militar que contou com outras realizações e outros momentos. A visibilidade arqueológica do muro do tempo de Dinis I ou o lanço de muralha que avança da Cerca Velha até à Torre de São Pedro provam como a defesa da cidade foi um processo continuado, conjunturalmente avaliado em cada época, cujas etapas de construção são mais numerosas e carecem de um estudo tipológico concertado. É nesse sentido que o trabalho de Artur Rocha no subsolo do Banco de Portugal deve ser articulado com as acções de Manuela Leitão na Cerca Velha e com os de Ana Gomes no Castelo de São Jorge, a que se devem juntar muitos outros autores que têm vindo a investigar, de forma parcelar, aqueles monumentos. Mas é também importante que exista um plano integrado para todo este património, no qual se inclua ainda a Cerca Fernandina e as sondagens mais ou menos isoladas que têm sido realizadas ao longo do seu percurso.
Finalizo com uma palavra sobre a excelente museografia do Núcleo de Interpretação da Muralha de D. Dinis. A visita é antecedida por uma animação gráfica relativamente simples mas muito didáctica, que passa em revista, em poucos segundos, a evolução da cidade desde a época medieval até aos nossos dias e as diferentes opções construtivas que foram tomadas para o local onde hoje se encontra o Banco de Portugal. A descida à muralha propriamente dita é acompanhada por um percurso descendente também em termos cronológicos, do mais recente para o mais antigo, que simula, em certa medida, a própria evolução de uma escavação arqueológica, ao longo do qual o visitante toma contacto com artefactos e outros objectos encontrados pelos arqueólogos. O espólio é limitado e de importância reduzida, mas as soluções de exposição encontradas, a que não faltam animações tridimensionais das peças, merecem ser elogiadas. Finalmente, o percurso pela muralha é acompanhado por discretas tabelas explicativas que contextualizam não só a história da muralha, mas também as muitas cicatrizes que os tempos posteriores deixaram, assim indicando aos visitantes que estão a observar um muro que, longe de alguma vez ter estado cristalizado no tempo, antes foi aproveitado para diversos fins ao longo da História, sendo a sua musealização apenas mais um momento. E isto é uma das coisas que se conseguem quando se junta dinheiro, competência e bom gosto». In Paulo Almeida Fernandes, Recensão, A Muralha de Dinis I e a Cidade de Lisboa. Fragmentos Arqueológicos e a Evolução Histórica, Museu do Dinheiro / Banco de Portugal, 2015, Universidade de Coimbra, IEM, Revista Medievalista, Nº 20, 2016, ISSN 1646-740X.

Cortesia de IEM/FCSH/NOVA/FCT/JDACT

Recensão. Artur Rocha. A Muralha de Dinis I e a Cidade de Lisboa. Fragmentos Arqueológicos e a Evolução Histórica. Paulo Almeida Fernandes. « Na verdade, a acção desenvolvida pelo Museu do Dinheiro não é a única iniciativa dedicada a desvendar e a preservar trechos do sistema muralhado medieval da cidade»

Cortesia de wikipedia

«(…) Outras perguntas situam-se em âmbitos de maior exigência, que apenas a ampliação da área intervencionada arqueologicamente poderá vir a responder. Qual a relação da muralha Dionisina com a Cerca Fernandina, construída escassos oitenta anos depois daquela? A crer no traçado proposto por Vieira Silva para esta última, a opção dos construtores do século XIV foi a de inviabilizar a edificação do tempo de Dinis I, que já aparece mencionada como muro velho num documento da chancelaria régia, datado de 1424. Este dado leva-me a admitir que a empreitada fernandina terá registado diferentes escolhas ainda por explicar cabalmente: na zona ocidental da cidade, terá menosprezado a muralha Dionisina mas, no extremo oposto, no lado oriental, aproveitou uma torre anterior ao tempo de Dinis I para se ligar à Cerca Velha, em concreto a torre de S. Pedro, cuja primeira menção data de 1263. Por outro lado, qual a relação que se poderá estabelecer com o troço do muro Dionisino identificado em 1939? Faria este ainda parte do sector de muralha promovido pelo rei, ou estaria já na área que a Câmara de Lisboa se comprometeu a construir pelo contrato de 1294, mas cuja empreitada não está provada? E teria o troço construído pela autarquia as mesmas características construtivas que o patrocinado pelo monarca?
Estas e muitas outras perguntas não podem ser dirigidas apenas à equipa de arqueologia do Museu do Dinheiro do Banco de Portugal. É necessário que outros agentes científicos possam prestar o seu contributo para que as perspectivas agora inauguradas de interpretação da muralha do reinado de Dinis I possam ter continuidade em relação à totalidade do sistema defensivo medieval de Lisboa. Na verdade, a acção desenvolvida pelo Museu do Dinheiro não é a única iniciativa dedicada a desvendar e a preservar trechos do sistema muralhado medieval da cidade. Dois outros projectos em curso merecem ser aqui referenciados, pela grande importância dos resultados até agora alcançados.
O primeiro diz respeito ao trabalho de Manuela Leitão, cuja investigação desenvolvida ao longo de vários anos sobre a Cerca Velha culminou na constituição de um circuito pedonal de cerca de 1,5 Km, sinalizado com 16 pontos de informação, e que permite a realização de uma visita orientada e informada de aproximadamente uma hora em torno daquele perímetro muralhado. Seguindo os vários painéis informativos, estrategicamente colocados em locais relevantes da muralha, que situam o visitante no circuito e fornecem-lhe informação contextual adicional, a visita pode ser complementada com um mapa que está disponível em alguns pontos turísticos, assim dispensando a orientação por parte de guias.
O itinerário da Cerca Velha foi inaugurado em Setembro de 2014 como produto turístico, mas ele representa a face mais visível de um programa de trabalhos de maior ambição. O PIEVCVL, Projecto Integrado de Estudo e Valorização da Cerca Velha de Lisboa, cujas origens recuam a 1998, promoveu a realização de 11 escavações, o levantamento criterioso de sete sectores de paramentos, duas acções de conservação e restauro e um plano coerente de qualificação urbanística da envolvente à cerca. Realizou-se mesmo um estudo de arqueologia da arquitectura, num dos trechos mais bem preservados (Rua da Judiaria e Postigo de São Pedro) e um projecto de investigação específico destinado a caracterizar as argamassas, passo interdisciplinar decisivo para compreender técnicas construtivas e a produção de ligantes e revestimentos a partir dos recursos naturais existentes em Lisboa.
Estes números impressionam pela abrangência de acções e novos dados serão revelados em breve (uma vez que continuam as sondagens, como a que a Marina Carvalhinhos efectuou na Rua Norberto Araújo, em 2015), mas a Cerca Velha, como qualquer marca arquitectónica de uma cidade em contínua transformação, é um organismo vivo que guarda partes da história de Lisboa por decifrar. A muralha não foi sempre uma fronteira; ela foi ponto de apoio e de partida para outras construções, foi rasgada e rompida para permitir acessos antes indesejados, foi alteada e suprimida ao sabor de vagas construtivas e gerações de vontades. A densa história que o projecto de estudo e valorização tem revelado, complementa-se com a documentação medieval, moderna e contemporânea e um crescente espólio iconográfico e fotográfico, ingredientes que adivinham a relevância e o sucesso de um centro interpretativo sobre este monumento (ambição antiga dos gestores do PIEVCVL), mas também de um livro sobre a Cerca Velha de Lisboa, não já um roteiro ou um circuito turístico-cultural, mas sim um estudo monográfico que sedimente o conhecimento adquirido até hoje». In Paulo Almeida Fernandes, Recensão, A Muralha de Dinis I e a Cidade de Lisboa. Fragmentos Arqueológicos e a Evolução Histórica, Museu do Dinheiro / Banco de Portugal, 2015, Universidade de Coimbra, IEM, Revista Medievalista, Nº 20, 2016, ISSN 1646-740X.

Cortesia de IEM/FCSH/NOVA/FCT/JDACT

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Jean Favier (1932 2014). Armando Luís C. Homem. «O tempo passado na École Française de Rome levou-o a conceber como tese doutoral a apresentar à Sorbonne um extenso projecto sobre as finanças pontificais ao tempo do Grande Cisma»

Cortesia de wikipedia

«Em Agosto de 2014 deixou-nos Jean Favier (JF), membro do Institut de France / Académie des inscriptions et belles-lettres (AIBL) e professor emérito da Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV). Natural de Paris, JF cursou a École des Chartes (1952 ss.), obtendo em 1956 o diploma de archiviste paléographe, após defesa de uma tese sobre Enguerran de Marigny. Nos dois anos subsequentes foi aluno da École Française de Rome, ao que se seguiu um período como conservateur aux Archives Nationales. Em 1961 obteve a agrégation d'histoire e no ano lectivo subsequente ensinou no liceu de Orléans. Seguir-se-ão dois anos como attaché de recherches no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), e em 1964 iniciará o seu percurso propriamente universitário, como maître de conférences nas U’s de Rennes (1964-1966) e de Rouen (1966-1969). Em 1965 é eleito Directeur d’études d’histoire administrative et financière du Moyen Âge occidental na École pratique des Hautes Études (IVe section: sciences historiques et philologiques), cargo de que será titular até à jubilação (1997).
O ano anterior ao Maio francês assistirá ao seu doctorat d'État em Paris, enquanto que o subsequente verá a sua eleição como professor da então ainda indivisa Sorbonne. No big-bang universitário da viragem da década, será um dos fundadores de Paris IV (Paris-Sorbonne); Favier aqui viria a ensinar até 1975, assumindo o ensino de uma nova cadeira de História Económica (elle fit mon bonheur) e de Paleografia e presidindo ao Institut d’Histoire a partir de 1970; entre os seus colegas de então menciona especialmente Alphonse Dupront (1905-1990, também fundador e primeiro presidente de Paris IV) e Michel Meslin (1926-2010).
1975, inauguraria, entretanto a fase gestionária do percurso de JF: na presidência de Valéry Giscard d’Estaing (1974-1981), e na primeira passagem de Jacques Chirac pela chefia do Executivo (1974-1976), foi nomeado Directeur général des Archives de France, cargo que desempenharia até 1994; neste ano passaria para a presidência da Bibliothèque nationale de France (até 1997); e seria, por último, Presidente da Commision française pour l'Unesco (1997 ss.). Neste interim, ficou en congé da sua cadeira em Paris IV, mas manteve até 1997 o ensino da Paleografia. Foi ainda membro do Institut / AIBL (1985 ss., presidente da AIBL em 1995); director da Revue Historique (1973-1997); vice-presidente (1984-1988) e presidente (1988-1992) do Conseil international des archives; presidente do Conseil d'administration da École normale supérieure (1989-1997); membro residente (e presidente, 1993) da Société nationale des antiquaires de France; membro do Comité des travaux historiques et scientifiques; membro do conselho executivo do Instituto Francesco Datini (Prato); e conservador do château de Langeais (1995-2012).
Que balanço para uma obra extensa e polimorfa? Na École des Chartes e na formação post-graduada, JF teve mestres (lato sensu) como Robert Fawtier (1885-1966), Alain de Boüard (1882-1955), Clovis Brunel (1884-1971), André Piganiol (1883-1968), Pierre Renouvin (1893-1974), Yves Renouard (1908-1965), Robert Boutruche (1904-1975) e Michel Mollat. De todos reteve algo. Por outro lado, nos seminários de Boutruche e Mollat que frequentou em Paris nas décadas de 50 e de 60, cruzou-se com Guy Fourquin (1925-1988), Bernard Guenée (1927-2010), Pierre Toubert, Philippe Contamine, Charles de la Roncière, Bronislaw Geremek (1932-2008), André Vauchez, Henri Dubois (1923-2012) e Jacques Le Goff (1924-2014). Tais mestres e colegas, bem como a conjuntura historiográfica de meados da década de 50, atraíram-no, ao projectar a tese final do período chartiste, para a época de Filipe IV, o Belo e para a problemática dos seus homens de leis. Depois de pensar nas figuras de Guillaume de Nogaret e de Guillaume de Plaisians, aconselhou-se com Charles-Edmond Perrin (1887-1974) e depois com R. Fawtier, assentando em Enguerran de Marigny. A esta personagem dedicou a tese (ainda hoje de bem profícua consulta) e uma edição de fontes; e deixou-nos um sólido dossier historiográfico sobre os légistes philippinos.
O tempo passado na École Française de Rome levou-o a conceber como tese doutoral a apresentar à Sorbonne um extenso projecto sobre as finanças pontificais ao tempo do Grande Cisma. O orientador seria Yves Renouard; mas a morte prematura deste em 1965 levou à indigitação de Michel Mollat; prestou provas em 1967, como se disse. JF virá a salientar que diversos desenvolvimentos da sua obra derivarão da formação diplomática (e do seu ulterior ensino nesta área) e do interesse precoce pela História dos poderes, pela edição ou problematização das fontes, pela abordagem biográfica, pela História administrativa, financeira e fiscal, bem como por algumas grandes sínteses ou pelo produtivo interesse pela História de Paris; enquanto que, ainda que com raízes já na pesquisa doutoral, o seu ensino de História económica frutificará em alguns outros volumes de largo fôlego, sobre ouro, especiarias ou comércio fluvial.
No fundo, JF realizou as sínteses possíveis da sua formação, do seu percurso universitário, do seu ensino e do seu desempenho consecutivo de cargos académicos, de gestão científica ou de altas Funções Públicas (normalmente designado por Executivos da família gaullista) ao longo de mais de três décadas. Alguém a ser recordado mais pela carreira do que pela obra, como ouvi comentar em Paris no final dos anos 90? Parece-me excessivo; malgré tout… Alguém, afinal, que eu também teria gostado de conhecer…» In Armando Luís Carvalho Homem, Jean Favier (1932 2014), Universidade do Porto, Faculdade de Letras, Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais, Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade, Porto, Revista Medievalista, Nº 20, Julho-Dezembro de 2016, ISSN 1646-740X.

Cortesia da RMedievalista/FLetras/Porto/JDACT