quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «Não a violastes? Quereis dizer que o vosso pai vos acusou de um crime que não cometestes?, prosseguiu Sadoleto, antes de lhe transmitir um avisado conselho…»

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«(…) Desejava que nada faltasse aos visitantes, que fossem atendidos com alardo, glória e emoção; mas também queria que os organizadores do préstito soubessem gerir os respectivos gastos com parcimónia, alguma inteligência e muita imaginação. Chegada pois a hora, não esqueceu o conselho que lhe fora dado anos antes pelo pai quando, ainda muito jovem, subiu ao cardinalato: gasta mais dinheiro na manutenção de um estábulo bem montado e criados de classe superior do que em pompa e circunstância. Ora, talvez por isso, no dia catorze de Fevereiro, durante uma reunião do consistório, constituído por vinte e cinco cardeais, alguns muito jovens, o chefe da cristandade foi claro nos seus objectivos:

Cabe-nos receber a comitiva do bondoso Manuel, piíssimo rei de Portugal, com o testemunho da nossa infinita gratidão, a nossa fé em Cristo e em Deus Pai Todo-Poderoso, mas devemos ser contidos nas despesas do programa. As libras estão muito caras e a cúria precisa delas.

Nesse conclave, destinado praticamente à discussão dos principais aspectos relativos aos festejos, o Papa decidiu nomear um bispo de sua confiança, Francesco Petrini, para dirigir o grupo, entretanto já formado, de acompanhamento da realização das cerimónias protocolares, nas suas vertentes religiosa e profana. Francesco Petrini, de vinte e nove anos, era reconhecido como um dos clérigos mais espertos e crentes do governo da Santa Sé; mas era igualmente tido como um dos maiores pecadores daquele conselho de ministros do culto. Além de libertino, corrupto, e malfeitor, o bispo era ainda assassino. Dois meses antes de o Papa o escolher para orientar o grupo de trabalho, que incluía mais de duas dezenas de romanos e cinco portugueses, Petrini matou o pai a golpes de machado só por ele o ter visto a espancar e a roubar um comerciante do bairro onde morava, depois de lhe violar a filha. O assassínio causou na altura um enorme alvoroço entre a vizinhança e o autor, temendo o castigo de Deus, ou, pior ainda, qualquer acto de vindicta por parte de familiares das vítimas, correu à pressa a refugiar-se no castelo de Sant’Angelo, para aí, a coberto do poder imune dos hábitos talares, pedir o perdão ao Sumo Pontífice por interposto eclesiástico da cúria romana.
Que fizestes, meu filho!?, perguntou-lhe o cardeal Sadoleto, um dos mais fiéis secretários do Papa, depois de Petrini falar da perseguição a que estava sujeito por parte dos moradores do bairro. Matei sem querer o meu extremoso pai por me ter acusado injustamente, à frente de populares, de violar a filha de um comerciante, amigo dele. Sentado na poltrona do aposento, desconfortável e frio, o cardeal Sadoleto ia rodando com a ponta dos dedos o anel de sinete da mão direita, ao mesmo tempo que ouvia com aparente atenção os queixumes de Petrini. E foi só isso, meu filho?, voltou a perguntar o outro, com um sorriso cínico no rosto. Matastes o vosso pai sem querer, apenas por ele ter visto e criticado o cometimento de um grave pecado que, bem sabeis, merece o castigo do Altíssimo?
Também me acusou, e de igual maneira sem motivo, de roubar o comerciante, acrescentou o confesso, com os olhos presos ao chão. Oh, Santo Deus!, exclamou o cardeal Sadoleto. Fez o sinal da cruz sobre o rosto, com a cabeça curvada rezou em silêncio uma avé-maria, e só então voltou a fazer outra pergunta. Que quereis agora, meu filho? O perdão de Deus e a absolvição de Sua Santidade, monsenhor, respondeu sem pestanejar o jovem bispo. Salodeto colocou a mão direita no peito, sobre o coração, e sempre com a voz calma e pausada continuou interrogativo: matastes o vosso pai, espancastes e roubastes o comerciante, violastes-lhe a filha e ainda assim vos quereis livrar desses pecados de inspiração demoníaca? Não violei a mulher, defendeu-se o bispo atabalhoadamente, alarmado com tantas acusações.
Não a violastes? Quereis dizer que o vosso pai vos acusou de um crime que não cometestes?, prosseguiu Sadoleto, antes de lhe transmitir um avisado conselho: peço que não vos esqueçais de que o perjúrio é também um delito grave e condenável, que ofende a Deus Nosso Senhor e à Santa Madre Igreja. Nesse momento Francesco Petrini voltou a baixar os olhos, tentou a custo emocionar-se e, em tom sumido, concedeu: sim. Estive com a mulher. E então? Foi só por pouco tempo, desculpou-se». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
                                                                                                                 
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