sábado, 9 de fevereiro de 2019

Vida Ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. «Na intimidade, expandia-se. Deixava de lado a cor escura da capa, o resguardo do capuz, a sombra do silêncio. Rodeava-se de cores quentes e impressivas, como o amarelo e o laranja; perfumava o ar de essências capitosas e inebriantes»

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O Comércio do Invisível
«(…) A luta que se travava no plano visível da Natureza degradada, com seres cegos e impiedosos, devorando e sendo devorados, continuava de forma ainda mais atroz no plano das emanações invisíveis terrenas. Uma fada que fosse cooptada por um monstro, servia de imediato as disformidades do seu hospedeiro, perdendo-se para sempre. O contrário porém era impossível; nenhuma fada, nenhum elfo ou nenhum génio volátil, emanação do mais leve e anódino animal de asas e penas, se podia tornar hospedeiro dum monstro, reformando-o dentro de si. Enquanto a humanidade não deixasse de ser pábulo das trevas, as benéficas emanações da Natureza material haviam de continuar a viver uma vida de fugitivas, sem qualquer possibilidade de exporem a sua mansidão, vencendo o horror das emanações disformes.
Leonor Teles, tendo visitado os planos angélic osda criação anterior à formação da Terra, possuía na alma uma irremediável nostalgia do além. O seu narural impulso atirava-a para esse píncaro de Luz, onde o Criador residia num estado próximo do Nada, alimentando-se em si, de si e para si. Tinha por isso momentos em que detestava estar viva, na Terra, sendo pertença da mesma criação terrena que parira lobos carniceiros, ursos ferozes, insectos sanguinários. Sentia-se anjo, essência nómada, olor luminoso, não mulher. Não percebia porque razão adquirira um vestuário de carne e sangue, idêntico ao de tantos seres densos, cegos e inferiores. Nessas alturas, em que a tristura de se sentir viva era tanta, falando alto consigo, como lhe sucedia sempre que estava só, desafogava. Isto é uma tulha do Inferno. O demo me prendeu a esta terra maldita de vinte passos!
Outros momentos tinha em que se adequava melhor à sua situação carnal, compreendendo que depois da vinda de Cristo à Terra era mister continuar uma obra de resgate, em que ela teria, não sabia onde nem como, um papel escolhido. Havia o sinal de Caim e o sinal de Jesus; aquele era uma nódoa escura, um ponto negro, e este um fumo branco, uma fragrância estonteante, derradeiro e precioso vestígio das correntes do bdélio que o paraíso terreal, no momento inicial da criação, conhecera. Por isso a tunicela de aromas estonteantes que de quando a quando na solidão a visitava de modo tão inebriante era para a jovem Leonor Teles o traço da sua aliança com Jesus. Nela o perfume era uma essência espontânea da alma e não uma exalação exterior. Não precisava de procurar as destilações exteriores que faziam o furor da irmã e da prima para sentir as sublimações da transcendência. Esse traço lhe chegava para saber que, não conhecia onde nem quando, teria um papel a desempenhar na história da redenção do mundo terreno.
Por agora, calava e escondia. Guardava o interior dos seus aposentos para manifestar aquilo que mais cerca andava da sua essência. No exterior reservava-se no silêncio, por vezes até na rispidez, não se desavindo por passar por aquilo que não era, uma menina brava e de mau humor. Na intimidade, expandia-se. Deixava de lado a cor escura da capa, o resguardo do capuz, a sombra do silêncio. Rodeava-se de cores quentes e impressivas, como o amarelo e o laranja; perfumava o ar de essências capitosas e inebriantes; adorava a voluptuosidade dos tecidos raros e aveludados. Os seus aposentos nada tinham da cela austera duma casa religiosa; antes pareciam os paços duma princesa mimosa que não suportasse senão o esplendor duma manhã ruidosa de Maio. Caprichava nos adornos, nas colgaduras, nos bordados a fio de oiro; cercava-se de plantas e de flores, que ela própria cuidava, delas tirando um brilho invulgar». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT