segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Emma. Jane Austen. «Certa manhã, enquanto estava sentada pensando exactamente que hoje seria uma destas noites, chegou um bilhete de Mrs. Goddard, solicitando permissão…»

jdact e wikipedia

«(…) Houve um estranho rumor em Highbury, dizendo que todos os filhos dos Perrys foram vistos com um pedaço do bolo de casamento de Mrs. Weston nas mãos: mas Mr.  Woodhouse jamais acreditou nisso.

Mr. Woodhouse apreciava a sociedade à sua própria maneira. Gostava muito que os amigos viessem vê-lo; e devido a vários factores, desde sua longa residência em Hartfield e sua natureza afável, e também por sua fortuna, sua casa e sua filha, podia comandar em grande parte as visitas de seu pequeno círculo de amigos conforme seus desejos. Não tinha muito contacto com nenhuma família fora deste círculo. Seu horror às horas tardias e aos grandes jantares festivos, tornava-o inadequado para qualquer conhecido que não pudesse visitá-lo nos seus próprios termos. Para sua felicidade, Highbury compreendia muitas propriedades, incluindo Randalls na mesma paróquia e Donwell Abbey na paróquia vizinha, a casa de Mr. Knightley. Várias vezes, devido à persuasão de Emma, ele convidava alguns dos melhores amigos para jantar, mas preferia mesmo as festas nocturnas. E, a menos que estivesse indisposto para receber visitas, era raro haver uma noite na semana em que Emma não organizasse uma mesa de jogos para ele. Mr. Knightley e os Westons o visitavam devido à sua verdadeira afeição e ao conhecimento de longa data. Quanto a Mr. Elton, um jovem que vivia sozinho sem apreciar isso, não corria o risco de ser mantido longe do privilégio de trocar qualquer noite livre da sua vazia solidão pela elegância e sociabilidade da sala de estar de Mr. Woodhouse, e os sorrisos da sua encantadora filha. Depois deste, vinha um segundo grupo. Entre os mais assíduos estavam Mrs. e Miss Bates e também Mrs. Goddard, três senhoras quase sempre à disposição para um convite de Hartfield, e que eram buscadas e levadas em casa com tanta frequência, que Mr. Woodhouse não considerava isso uma inconveniência, nem para James, nem para os cavalos. Se isso acontecesse apenas uma vez por ano seria motivo de queixa.
Mrs. Bates, a viúva de um antigo vigário de Highbury, era uma senhora bastante idosa, que já deixara quase tudo para trás, menos o chá e quadrilha. Vivia de forma bastante modesta, com sua única filha solteira, e era tratada com todo o respeito e consideração que merecia uma velha e inofensiva dama vivendo em condições tão desfavoráveis. Sua filha desfrutava do mais incomum grau de popularidade para uma mulher que não era nem jovem, nem bonita, nem rica e nem casada. Miss Bates se encontrava na pior situação do mundo para obter a boa vontade das pessoas; não possuía nenhuma superioridade intelectual para compensar, nem para intimidar aqueles que poderiam odiá-la, fazendo com que a respeitassem. Nunca ostentara nem beleza nem inteligência. Sua juventude se passou sem distinção alguma, e na meia idade devotava-se ao cuidado de uma mãe doente, e ao esforço de fazer com que o seu pequeno rendimento durasse o mais possível. E, no entanto, era uma pessoa feliz, alguém que todos mencionavam com palavras gentis. Era sua universal boa vontade e temperamento alegre que produziam tais maravilhas. Ela gostava de todos, interessava-se pela felicidade de todos, percebia logo os méritos das pessoas; considerava-se a mais afortunada das criaturas, e rodeada de bênçãos por ter uma mãe excelente, tantos bons amigos e vizinhos, e um lar onde nada faltava. Sua natureza simples e alegre, seu temperamento contente e grato era uma recomendação para todo mundo e uma fonte de alegria para ela mesma. Era óptima para conversar sobre assuntos banais, falava sempre sobre trivialidades e mexericos inofensivos, o que agradava bastante a Mr. Woodhouse.
Mrs. Goddard era a professora de uma escola, não de um seminário, ou de um estabelecimento, ou qualquer lugar que fosse denominado por longas e refinadas frases sem sentido, para combinar conhecimentos liberais com elegante moralismo, em novos princípios e novos métodos, e onde jovens ricas podiam ser despojadas de sua saúde em tributo à vaidade, mas um verdadeiro, honesto e antiquado internato, onde uma quantidade razoável de conhecimentos era vendida a preço razoável, e onde as meninas podiam ser mandadas para ficar fora do caminho dos pais, e se depararem com uma educação moderada, sem nenhum perigo de se tornarem prodígios. A escola de Mrs. Goddard tinha uma elevada reputação, e bastante merecida; para Highbury era considerado um lugar particularmente saudável: possuía uma casa e jardins amplos, fornecia comida saudável às crianças, deixava-as correr bastante ao ar livre durante o verão, e no inverno curava suas frieiras com as próprias mãos. Não era de se estranhar que uma fila de vinte jovens casais caminhasse atrás dela para a igreja. Era uma mulher do tipo simples e maternal, que trabalhara duro na juventude, e acreditava ter direito a uma folga ocasional para uma visita na hora do chá. Devia muito à bondade de Mr. Woodhouse anos atrás, portanto, sempre que podia, atendia ao seu chamado, deixando sua organizada sala de sala de estar e seus trabalhos de agulha para ganhar ou perder algumas poucas moedas de meio xelim diante da sua lareira em Hartfield.
Estas eram as damas que Emma podia reunir com frequência, e sentia-se feliz por agradar ao pai, apesar de que, no que lhe dizia respeito, não havia remédio para a ausência de Mrs. Weston. Ficava contente por ver o pai tranquilo e bastante satisfeita por planear as coisas tão bem. A pacata conversa das três senhoras, no entanto, antecipava uma daquelas longas noites sem atractivos que ela tanto temia.
Certa manhã, enquanto estava sentada pensando exactamente que hoje seria uma destas noites, chegou um bilhete de Mrs. Goddard, solicitando permissão, nos termos mais respeitosos, para trazer consigo Miss Smith. Era um pedido bem-vindo, pois Miss Smith era uma moça de dezassete anos, a quem Emma conhecia muito bem de vista, e que há muito tinha interesse em conhecer pessoalmente, por conta de sua beleza. Um gracioso convite foi enviado, e a bela dona da mansão deixou de temer o serão daquela noite. Harriet Smith era a filha natural de alguém. Alguém a colocara, vários anos atrás, na escola de Mrs. Goddard, e esse alguém mais tarde elevou-a da condição de estudante mantida por uma bolsa de estudos à de pensionista, vivendo com a directora da escola. Isso era tudo que se sabia da história dela. Não tinha amigos conhecidos, a não ser os que fizera em Highbury, e agora acabava de retornar de uma longa visita ao campo, como hóspede de algumas jovens damas que foram suas colegas na escola.
Era uma moça muito bonita, de uma beleza que Emma admirava particularmente. Era pequena, roliça e de tez clara, com uma pele viçosa, olhos azuis, cabelos loiros, feições regulares e um ar de grande doçura. Antes de a noite terminar Emma estava tão contente com seus modos quanto com sua aparência, e bastante determinada a continuar a amizade». In Jane Austen, Emma, 1815/1816, Relógio de Água, 2016, ISBN 978-989-641-622-5.

Cortesia de RdeÁgua/JDACT