quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

O Papa Negro. Ernesto Mezzabota. «Entretanto, tivestes um trabalho inútil, o que é muito para sentir, dada a importância da vossa missão. Mas não falemos mais disso…. Viestes para vos confessardes?»

Cortesia de wikipedia

O reverendo padre Lefèvre
«(….) Tinha agora a fonte mais escampada, por lhe rarearem os cabelos, e isso fazia com que ela parecesse mais vasta, dando à figura do ex-estudante saboreando uma expressão de severa majestade, que incutia respeito. Lefèvre saudou Diana com uma ligeira inclinação quando esta ao entrar se curvou profundamente. Perdoai-me, meu padre, disse a viúva, se não vim tão depressa como desejava; mas uma visita de cerimónia… Não foi por causa dessa visita de cerimónia que perdestes tanto tempo, minha filha, disse o padre, que com um olhar rápido tinha observado o vestido de Diana. Perdestes também alguns instantes para enganar o vosso pai espiritual. Eu!, exclamou Diana, cheia de confusão. Sim, vós…, receastes que eu achasse demasiado mundano o vestuário com que recebestes o príncipe Henrique, e mudastes de vestido… como se a vista de um sacerdote pudesse ser perturbada pelo que desperta a admiração e os desejos dos outros homens. Noutra qualquer ocasião a senhora de Brezé ficaria maravilhada por ver que um estranho assim adivinhava os seus mais íntimos pensamentos; mas o padre Lefèvre já por vezes lhe dera tais provas da sua onisciência, que a condessa já de nada se espantava. Inclinou a fronte, que passado um momento, ergueu. Então cometi um pecado?, perguntou ela. Pecado? Não; além de que, bem sabeis, minha filha, que nós procedemos com brandura e circunspecção, antes de considerarmos pecaminoso um acto qualquer. Entretanto, tivestes um trabalho inútil, o que é muito para sentir, dada a importância da vossa missão. Mas não falemos mais disso…. Viestes para vos confessardes?
Sim, meu padre, disse Diana. Preciso de encontrar nas palavras e nos conselhos de Vossa Paternidade um conforto às dúvidas, que me amarguram a vida. Supliquei-vos que fosseis o meu director espiritual, porque a vossa fama de piedade, de saber, de austeridade… Obrigado, minha filha. A Companhia de Jesus foi instituída há poucos anos, mas o Senhor abençoou os nossos esforços, e hoje já dirigimos a consciência dos mais ilustres personagens católicos. De resto, os pecados que tendes confiado ao tribunal da penitência têm sido sempre tão leves, que na verdade, mesmo para um pobre padre ignorante como eu, e o frade inclinou-se com orgulhosa modéstia, não é difícil tarefa manter-vos sempre no caminho da salvação. Diana parecia hesitar.
Meu padre, disse ela afinal, tenho de fazer-vos confissão de algumas faltas mais graves; mas primeiro desejava saber…, se é certo…, como se diz... Eu concluo a vossa frase, filha. Desejais saber se é certo, como se diz, que os padres da Companhia de Jesus têm para com os pecadores uma indulgência muito superior à que costumam ter os outros confessores; se é verdade que eles têm os meios de diminuir aos olhos dos pecadores a gravidade das suas faltas, e de reconciliar com Deus, sem sacrifícios. É isto que desejais saber minha filha? É, meu padre..., ou pelo menos alguma coisa parecida. Pois bem, ficai então sabendo que esta nossa indulgência que os descrentes nos censuram como uma culpa gravíssima, é verdadeira. Diana fez um gesto de espanto. Oh! entendamo-nos!, disse com o seu frio sorriso o padre Lefèvre, nós somos tão severos como os outros, quando trata de culpas cometidas com pura maldade e só com a intenção de fazer mal; mas, quando julgamos os pecados, sabemos distinguir o elemento mau da intenção, das circunstâncias e dos impulsos exteriores; e quanto mais fortes são estes, tanto mais benévolos nós somos em perdoar a queda.
Não vos compreendo bem, meu padre, disse a jovem viúva, tornando-se pensativa. Eu vos apresento um exemplo, disse o jesuíta, envolvendo num olhar perscrutador toda a pessoa da condessa. Suponhamos que uma jovem, vendo passar um príncipe belo, valoroso galante, lhe corre ao encontro e se lhe lança aos pés, oferecendo-se o corpo; essa tal seria uma mulher perdida, uma cortesã dissoluta, uma condenada às penas eternas, que sofrem os que pecam por luxúria. E então?..., perguntou Diana em grande ânsia. Mas suponhamos agora que aquele príncipe, tanto mais pronto a irar-se, quanto mais poderoso, tinha resolvido fazer morrer o pai daquela jovem. Suponhamos que ela resgatou, à custa da própria honra, a vida de seu pai, e nesse caso converteu-se ela numa Judite, transformou-se numa heroína.
Padre! Padre!, que dizeis!, exclamou a condessa. Porventura conheceríeis vós alguma jovem, alguma mulher que se achasse nestas circunstâncias?, perguntou com absoluta tranquilidade o padre Lefèvre. Diana, completamente abatida, deixou pender os braços. Eles sabem tudo; murmurou, sabem tudo, e eu, como louca, quero competir com eles… Com estes aliados serei tudo, sem eles não serei nada… Oh! É preciso que eu me decida! E resolutamente, voltando-se para o jesuíta, disse-lhe: meu padre, tende a bondade de me ouvir de confissão. Estou pronto, minha filha, respondeu o jesuíta, disfarçando um sorriso de triunfo, que lhe despontava nos lábios». In Ernesto Mezzabota, O Papa Negro, 1947, tradução de Adolfo Portela, Brasil, Exilado dos Livros, Epub, 2001, ISBN 858-671-001-6.

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