segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «O pai podia ser um bom almocreve, mas não era vidente, não podia ter adivinhado que se iriam cruzar com as tropas do califa»

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Coimbra. Julho de 1117
«(…) Nesse preciso instante, Taxfin viu-se numa encruzilhada: ou mentia ao califa e arriscava-se a morrer ali, ou calava-se para sempre, protegendo com o seu silêncio Zulmira, Fátima e Zaida. Decidiu ficar mudo. Ali Yusuf, o poderoso de Marraquexe, animou-se e sugeriu: é melhor ficarem com os cristãos. É menos perigoso para elas. E vós ireis acompanhar-me, é menos perigoso para vós. Receoso, Taxfin sentiu movimento e olhou para o lado, temendo o fedayin. Mas era apenas uma rapariga que trazia tâmaras. O califa pegou em duas e ordenou: prepara as tropas, vamos batalhar para Saragoça. Foi assim que Zulmira, Fátima e Zaida ficaram a viver em Coimbra. Nesse ano e pela segunda vez, Abu Zhakaria partiu com Taxfin, acompanhando o califa, mas na sua cabeça, como na do segundo marido de Zulmira, já nascia uma vontade de regresso e um plano de resgate das três mulheres. Embora nenhum deles soubesse quanto tempo demorariam a voltar ou se voltariam...

Coimbra, Julho de 1117
De todos os homens que conheci naquela época, Mem Ramires era certamente o mais bem-sucedido com as mulheres, e talvez por isso lhe tínhamos inveja. Hoje, tantos anos passados, já sou capaz de o reconhecer! As mulheres caíam-lhe aos pés, queriam-no, morriam por ele. Nunca vi nada assim. No entanto, o seu charme e a tranquilidade sedutora não deixam de ser curiosos, e até inesperados, num homem marcado pela tragédia desde a infância, que viu o pai morrer de uma forma brutal, coisa que naturalmente nunca esqueceu. Graças a um Deus em que ele não acreditava mas existe, essa sinistra memória nunca o tornou num ser ressentido ou irrazoável. Continuou tranquilo e alegre.
Mem era filho de um almocreve, um moçárabe de Santarém que fazia viagens na sua carroça entre Lisboa e Coimbra, comerciando com as gentes locais, levando empoleirado em cima dos sacos o filho, que sempre o acompanhava, pois Mem tinha apenas doze anos, era órfão de mãe e o pai nunca o deixava sozinho em casa. Por isso, anda lá Mem, sobe para a carroça, vamos a Coimbra, fora o que o pai dissera, e ele trepara, contente, para cima das sacas de trigo ou de arroz, de farinhas ou de azeitonas, de tangerinas ou de alperces, de tremoços ou de açafrão, de mel ou de linhos, de queijadas ou de carnes. Até patos e galinhas o pai transportava, mas como o cheiro dos excrementos lhe irritava o nariz, Mem afastava-se até ao fundo da carroça, para evitar um ataque de espirros.
O pai podia ser um bom almocreve, mas não era vidente, não podia ter adivinhado que se iriam cruzar com as tropas do califa. Um grupo liderado por um tal Abu Zhakaria, um rapaz novo, nem vinte anos tinha, fino como um alho, cercou-os sem eles darem por isso, aproveitando umas elevações à beira da estrada. Foram presos. Os guerreiros ficaram com o carregamento da carroça, embora Abu Zhakaria tivesse prometido ao almocreve que o compensariam, logo que se apoderassem de Coimbra». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
                                         
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