segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Por isso, esperaram que o Sol regressasse, o que aconteceu passado algum tempo, tendo o dia voltado a ser o que era e as estrelas desaparecido»

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Coimbra. Julho de 1117
«(…) Mem não era uma coisa nem outra, era as duas ao mesmo tempo, ou nenhuma delas. O pai era muçulmano, mas não ligava a rezas, embora gostasse de falar na Bíblia, e a mãe, apesar de cristã, morrera há tanto tempo que Mem já não se recordava do dia em que entrara numa igreja pela última vez.
Como ele não respondeu, a velha concluiu: sois moçárabe. Olhando para o corpo morto, declarou: o vosso pai não pode ficar assim. Como não temos com que enterrá-lo, teremos de queimá-lo.
Mem deu o seu aval com um aceno de cabeça. A mulher percebeu que ele estava demasiado impressionado para se conseguir aproximar do pai, por isso disse: deixai estar, eu faço isso.
O rapaz viu-a rodar o corpo do pai, de forma a que ficasse com as costas no chão, e endireitar as pernas e os braços, juntando as primeiras e alinhando os segundos junto ao tronco. De seguida, viu-a pegar na cabeça com cuidado e colocá-la junto ao pescoço, de onde fora abruptamente separada, colocando duas pedras, uma de cada lado da cabeça, para que esta não rodasse.
Terminado este meticuloso trabalho, a velha perguntou: quereis rezar, dizer umas palavras? Mem continuava incapaz de falar. A mulher entendeu as suas limitações e desatou a deitar por cima do corpo do pai um pó que trazia num saco, enquanto murmurava uma ladainha incompreensível, numa língua que Mem desconhecia, talvez um cantar do Levante.
Quando acabou este ritual, questionou-o: sabes porque está tão escuro e o Sol ficou castanho? Explicou que a Lua passava em frente do Sol, roubando-lhe os raios e a luz. E declarou que era melhor só queimarem o pai quando o Sol voltasse, pois os deuses não recebiam bem os mortos durante aquele milagre, achavam que eles eram capazes de roubar a luz e temiam-nos. Com um suspiro, Mem concordou, era melhor os deuses não terem medo do pai, queria que ele ficasse em paz para toda a eternidade. Por isso, esperaram que o Sol regressasse, o que aconteceu passado algum tempo, tendo o dia voltado a ser o que era e as estrelas desaparecido.
Nesse momento, a mulher executou um gesto rápido e o corpo do pai de Mem pegou fogo imediatamente, e ficaram a vê-lo arder. Depois, a mulher despediu-se de Mem, dizendo que tinha de ir queimar os outros corpos. Indicou-lhe onde estavam as suas roupas, à beira-rio, e antes de partir sugeriu que ele devia dirigir-se a Coimbra, havia lá gente que lhe daria trabalho. Sois filho de um bom almocreve, um dia sereis como ele.
Parece que ainda o oiço perguntar, espantado: Lourenço Viegas, eu nesse dia só me interrogava! Como conhecia ela o meu pai? Sabia que era almocreve! Mem disse-me que ainda pensou em segui-la, mas não o fez, pois queria ficar junto do pai até ao fim. Horas mais tarde, quando o corpo já era um monte de cinzas e ele já não tinha mais lágrimas nos olhos, Mem seguiu o conselho da velha mulher e dirigiu-se à cidade. No dia em que recordámos os três esta história, Zaida sorriu-nos e disse: foi a bruxa que nos ligou uns aos outros». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
                                         
Cortesia de CdasLetras/JDACT