quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Catarina de Habsburgo. Rainha de Portugal. Yolanda Scheuber. «Povoados de saudades e de sombras, entraram nos meus sonhos, e, apesar de se repetirem com frequência, nunca de forma tão obstinada como se abateram sobre mim naqueles tristes dias…»

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«(…) Bebendo diariamente daqueles ideais, o menino sonhou a partir de então transformar-se no valente rei que todos desejavam que fosse e que levasse o seu país ao esplendor máximo. Em 1557, sua mãe, a princesa Joana, por recomendação do seu confessor Francisco Borja, fundou em Madrid o mosteiro das Clarissas, Nossa Senhora da Consolação, Convento das Descalças Reais, situado no mesmo palácio onde ela nascera e fora baptizada. Ali se recolheu e levou até à morte uma vida dedicada com total entrega ao serviço de Deus. Tristemente, a 7 de Setembro de 1573, partiu para a eternidade. Sebastião não derramou uma única lágrima porque nunca chegou a conhecê-la, apesar de eu, para que a amasse, nunca tivesse deixado de lhe falar dela. Também eu, na intimidade desta casa do Senhor, me sinto mais perto da minha família perdida... Já nem o meu esposo nem os meus nove filhos estão neste mundo, assim como nenhum dos meus irmãos. A eles falo através de Deus quando rezo e a eles me parece ouvir quando leio a sua palavra na Bíblia.
Recordo como se fosse hoje o dia em que transpus os portões deste claustro. Respirava-se aqui dentro uma atmosfera diferente, eram os aromas da paz e da alegria profunda de estar sempre com a mente posta em Deus, afastada do mundo. Aqui sente-se o estado de graça. Tanto a prioresa como o resto das monjas são mulheres piedosas, sinceras e devotas, naturais, verdadeiras..., que nunca deixam de pisar a terra sem cuidar dos pobres e desvalidos. Henrique, o cardeal, reinou em nome de Sebastião até à memorável data de 1568, em que meu neto, com catorze anos, tomou posse efectiva do trono e assumiu os destinos do reino.
O jovem monarca já tem nove anos de reinado pessoal. Dentro de seis dias fará vinte e três anos. Por muito poucos dias de diferença, nunca pudemos celebrar juntos os nossos aniversários. Para que fosse evidente que o meu desejo era viver recolhida dentro deste mosteiro, renunciei a tudo o que era mundano e ordenei que me conduzissem até aqui. A prioresa preparou com agrado uns claustros espaçosos para meu alojamento. Jurei interiormente, ao transpor o umbral, permanecer em clausura e nunca mais voltar a atravessá-lo em vida, a menos que algum funeral familiar o exigisse. Desde a morte do meu esposo, visto o meu corpo de negro e trago o rosto sombreado pela dor, dor que não posso arrancar da minha alma, por ter presenciado a morte de todos os meus filhos... O convento faz parte, desde esse ano, dos muitos lugares que deram acolhimento ao meu corpo e à minha alma ao longo de toda a existência. Nesta solidão em que me encontro, também se filtram habitualmente notícias políticas e, com elas, os meus pesares normalmente crescem.
Não foi por influência de ninguém, mas por decisão própria, que decidi viver e morrer neste sítio. Com ansiedade procurei este ambiente ao ficar sozinha e encarei-o com agrado, como quem aceita a tarefa que tem de realizar até ao último instante sem fazer mais perguntas; entre outras razões porque o desejo fervorosamente, ou talvez por este único motivo. E compreendi por fim, sem que a minha mente talvez o entendesse, que não é preciso lutar contra a solidão quando a velhice bate à porta, porque e um objectivo vão.
Saí do convento, não vos resguardeis dentro dele ou dentro de vós, ouvi muitas vezes dizer a voz da consciência. Não vos protegeis mais. Se escondeis os vossos olhos para que não os magoe o Sol, mais de mil vezes havereis de vos ofuscar com os seus raios. Já é tempo de provardes o vosso próprio remédio, o alívio não vos virá de fora. Podeis procurá-lo, não vos detendes, nem sequer é preciso que vos movais. Tudo está dentro de vós. Foi nos meses em que acabara de chegar ao mosteiro que surgiram os primeiros pesadelos. Povoados de saudades e de sombras, entraram nos meus sonhos, e, apesar de se repetirem com frequência, nunca de forma tão obstinada como se abateram sobre mim naqueles tristes dias de princípios de 1563. Nesses sonhos apenas eu existia. Quero dizer que só me via a mim mesma junto de um labirinto de atalhos que se abriam, confusos, e que me conduziam sempre para o nosso palácio de Sintra, onde já ninguém habitava, ou por vezes para os mesmos aposentos onde eu residira e por cujas janelas penetravam, imperativas, as primeiras escuridões da tarde. À medida que os pesadelos se repetiam, as minhas noites iam-se tornando mais penosas; esforçava-me durante o dia por afastar da mente aqueles pensamentos carregados de preocupações, mas eles, adiados e não mortos, apareciam novamente todas as noites, mostrando-me as imagens esbatidas dos meus filhos». In Yolanda Scheuber, Catarina de Habsburgo, Rainha de Portugal, Ediciones Nowtilus, 2011, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2013, ISBN 978-972-462-077-0.

Cortesia de CdasLetras/JDACT