domingo, 24 de fevereiro de 2019

Marquesa de Alorna. Maria João Lopo de Carvalho. «Sim, minha senhora, a cozinha está de pé, e a despensa também. Vamos, menina Leonor, vamos menina Maria, deixem a mãezinha sossegar, vamos!»

Cortesia de wikipedia e jdact

Palácio do Limoeiro. Lisboa, 1 de Novembro de 1755
«(…) Senhora dona Leonor, nem sei como o dizer a Vossa Excelência, começou Vicente, gaguejando e torcendo o chapéu entre as mãos. Dá-se que…, acabou um almocreve de aqui passar, dizendo que, na Paróquia dos Mártires, ruiu o Convento de São Francisco e que o palácio do marquês de Marialva e o de Sua Excelência o marquês de Távora tiveram a mesma triste sorte…Todas as casas da Rua da Boa Viagem até aos Mártires e para diante ruíram… Minha senhora, há notícia de que desapareceram os palácios do duque de Lafões, do duque de Aveiro, dos condes do Vimieiro…, e o dos senhores condes de Atouguia… De minha irmã Mariana? De meus queridos pais? Deus Nosso Senhor nos acuda! Vicente confirmou, acenando com a cabeça e pedindo para se retirar. Vicente!, suplicou dona Leonor, transtornada, preciso de saber de minha mãe e de minha irmã! Manda alguém! Vai, vai já, traz-me novas depressa! Pois sim, Senhora dona Leonor, mas não há modo de passar para lá…, ruiu tudo aqui à volta, não há caminhos, nem lugares, tem de se subir pelos montes de escombros e voltar a descer, há fumo por todo o lado, há labaredas acesas… Vai! Aparelha um cavalo e vai! Sem mais demoras!, gritou dona Leonor, desfeita em lágrimas. Não me digas se é fácil ou difícil, quero saber de minha mãe… Faz o que te digo!
Ao ver Vicente retirar-se com o medo estampado no olhar, dona Leonor entregou Pedro à ama, ajoelhou-se no genuflexório e, escondendo a cara entre as mãos, chorou de mágoa, de angústia, de desespero. Leonor sentou-se à sua beira, fingindo-se entretida com a cauda do saiote, e, sem dizer uma só palavra, ali ficou, cuidando poder aliviar-lhe a dor. Talvez que a sua proximidade trouxesse à mãe alguma esperança, lhe desse algum conforto. Dona Leonor!, interrompeu Feliciana, abeirando-se da sua senhora, chegou notícia de que o Paço da Ribeira está a arder…, mas El-Rei José I e Sua Alteza Sereníssima, a Rainha dona Mariana Vitória, estão de saúde, pela graça de Deus, posto que desde ontem se encontravam no Paço de Belém, com toda a família real. Diz que os animais que estavam por lá, no parque dos jardins reais, fugiram: pássaros de além-mar, macacos, pumas, leões! As jaulas cederam, foi o que nos chegou. Leonor levantou-se de um pulo e exclamou com os olhos a brilhar: foi o que a mana ouviu, um leão a rugir! Não foi, Maria? Onde é que ele está, Feliciana? Ora, menina Leonor, lá está a menina com a sua imaginação! Descanse que os criados de El-Rei já mandaram matar as feras que escaparam! Leonor não se deixou convencer pelas palavras de Feliciana; se Maria tinha ouvido um leão a rugir, era porque um deles andava por ali a rondar. Agarrou-se com força à boneca Perpétua. Sabia-se protegida pela mãe e pelos criados, no entanto, esforçou-se por não adormecer: as feras tinham por costume atacar à noite… E quem lhe garantia que não vinha aí outra onda gigante? Pela graça de Deus, não me digas mais nada, Feliciana!, pediu dona Leonor. Dá a ceia às meninas, e a ama que cuide de Pedro, que eu fico aqui a rezar até que o Senhor dom João regresse e até que volte o Vicente com novas de minha mãe e de minha irmã Mariana.
Sim, minha senhora, a cozinha está de pé, e a despensa também. Vamos, menina Leonor, vamos menina Maria, deixem a mãezinha sossegar, vamos! As duas crianças seguiram Feliciana pelo pátio do palácio, dando a mão uma à outra. Leonor lembrou-se da boneca, que tinha ficado esquecida junto ao genuflexório, deu uma corrida, apanhou-a e voltou a segurar na mão de Maria. Ao sair da capela, olhou para trás, por cima do ombro: a mãe, ajoelhada e julgando-se sozinha, deixava agora que os violentos soluços que calara lhe sacudissem o corpo todo.

Já a noite ia alta quando dom João e Francisco José Castro chegaram ao que restava do Palácio do Limoeiro. Encontraram a família e os criados reunidos na capela. Dona Leonor segurava no terço. Tinha o rosto transfigurado pelas lágrimas e pela angústia daquele rosário de horas a que já perdera a conta. João! Senhor meu marido, diz-me, diz-me depressa! Faz tempo que Vicente saiu daqui e ainda não voltou! Nada sei de minha irmã Mariana, nem de meus pais…, suplicou, levantando-se e segurando as mãos do marido. Conta-me a verdade, não me escondas nada… João estreitou a mulher num abraço comovido: sossega, Leonor, estão todos de saúde, com a graça de Deus Nosso Senhor Jesus Cristo. Dormem?, perguntou, olhando para as filhas, que repousavam em mantas, no chão, com a cabeça apoiada no colo das criadas. Dormem, sim. A Leonorzita estava muito inquieta, não parava de fazer perguntas. O que lhe respondo? O que dizer de toda esta tragédia? Não é tempo de respostas, senhora minha esposa, não é tempo de respostas… Deixando-se cair num dos bancos da capela, dom João sacudiu a fuligem das botas e da casaca. Depois, recuperando forças, desabafou: acabei de ver a maior desgraça que em vida me foi dado presenciar. Por todo o lado há mortos, feridos aos milhares, Leonor. Lisboa era aqui mas já não há mais Lisboa, acredita! Lisboa desabou…, só me traz à memória o dia do Juízo Final!» In Maria Lopo de Carvalho, Marquesa de Alorna, Oficina do Livro, 2011, ISBN 978-989-555-554-3.

Cortesia de OdoLivro/JDACT