segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

O Estranho Caso de Sebastião Moncada. João Pedro Marques. «Mateus Vilaverde acabou por ganhar um asco visceral aos corcundas (forma como os liberais se referiam aos miguelistas) e à sua violência infrene»

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O Mistério da Foz
«(…) Fosse por que razão fosse, deu esse passo com tal entusiasmo e empenho que, um ano volvido, já cingia uma banda de alferes. Nesse primeiro momento de recompensa, Mateus congratulou-se por ter dado aquele rumo à sua vida. Era, então, muito atraído pelo luzimento da vida militar e o brio e o mérito com que desempenhava as missões de que o incumbiam, fizeram com que, em breve, chegasse a tenente e, alguns anos depois, a capitão, o mais jovem capitão do regimento. Como prémio pelos bons serviços prestados foi transferido para a Guarda Real de Polícia, ficando a comandar a 4.a Companhia, à qual cabia a patrulha da parte norte de Lisboa e subúrbios.
Sentiu-se honradíssimo com aquele comando. Estavam na Guarda Real os melhores soldados, os mais fortes e mais firmes, e ele fez por merecê-los. Mas os tempos eram difíceis e os mares encapelados. Corria, então, a Primavera de 1822 e os dias revolviam-se na agitação política decorrente da revolução. O rei viera do Brasil no Verão anterior, mas a sua chegada não apaziguara o ódio entre realistas e constitucionais. Pelo contrário, acirrara-o pois na comitiva que, acompanhava o monarca vinham muitos inimigos do espírito liberal, como dona Carlota Joaquina, a megera de Queluz, ou o infante Miguel, que cedo se tornou o chefe da contra-revolução. E, com os meses a passar, o inevitável braço-de-ferro começou a pender para os miguelistas, o que Mateus muito lamentou, ainda que não fosse um liberal assumido. A bem dizer, a política nunca lhe interessara. Na idade em que muitos dos seus camaradas de armas já tinham paixões e convicções ele tinha apenas vagas curiosidades e nenhuma comoção política parecia suficientemente forte para provocar vibrações nos seus nervos. Em seu redor os países explodiam em revoluções e pronunciamentos, os povos reivindicavam liberdades, igualdades, sufrágios, constituições, muitos dos seus colegas liam e decoravam os discursos das assembleias, os escritos de Mirabeau e as doutrinas dos filósofos que preparavam as revoluções, mas ele não costumava perder tempo a pensar nisso. Para quê? Os homens eram todos falsos e venais, fossem eles absolutistas ou constitucionais, e ele já vira como até as mais generosas ideias liberais podiam alienar-se e transfigurar-se em armas tão impiedosas como as baionetas de Soult. A letra da lei era a única coisa em que podia depositar uma confiança cega e ele, um incréu, seguia a legislação civil e os regulamentos militares com uma devoção quase religiosa.
O tio dissera-lhe um dia: ser livre é ser amante da ordem e escravo da lei. Nós não somos livres à maneira dos tigres. Somos livres como homens racionais o devem ser: na obediência da lei, Mateus, na obediência da lei!
Mantivera essa máxima e as leis passaram a ser, a par dos sentimentos que o faziam superar-se ou comover-se, as únicas âncoras da sua existência. Coração e lei iam imprimindo os mapas muitas vezes contraditórios que orientavam os seus rumos; o resto pouco lhe interessava. Todavia, a luta política daqueles dias tumultuosos passava-se à sua frente, debaixo dos seus olhos, e era-lhe impossível não ver que os malhados (designação que os miguelistas davam aos liberais) procuravam seguir a lei e que os seus opositores a violavam e deformavam, sem olhar a meios. Foi, portanto, por razões morais e afectivas que Mateus Vilaverde acabou por ganhar um asco visceral aos corcundas (forma como os liberais se referiam aos miguelistas) e à sua violência infrene». In João Pedro Marques, O Estranho Caso de Sebastião Moncada, Porto Editora, 2014, ISBN 978-972-004-495-2.

Cortesia de PortoEditora/JDACT