quarta-feira, 27 de novembro de 2019

A Casa do Pó. Fernando Campos. «… deita fora o que resta da água, enche-o de novo olhando-me de soslaio, com um sorriso brejeiro, e apresenta-mo: a tua sede é desta água, loiraço duma figa!»

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A Letra Pitagórica
«(…) Para nós creio que o mais bonito é escolher os aromas simples que estão à nossa volta:

Rosmaninho, alecrim da nossa terra nardo e junça dos brejos
louvai ao Senhor!

É lindo!, exclama Diogo. Nosso padre São Francisco por certo gostaria. Ficámos calados algum tempo, revolvendo na alma ideias e sentimentos suscitados por aqueles versos. Os nossos sentidos não eram igualmente nobres, quebrava eu o silêncio. Como assim?... Reparasse. As principais artes eram a pintura, a música, a escultura, queria dizer, as manifestações da vida que se exprimem pelos olhos, pelo ouvido, pelo tacto: as formas das coisas, a sombra e a luz, o claro e o escuro, as cores e seus cambiantes; os sons, os ruídos, tons e meios tons, a voz humana, o vibrar de uma tripa ressequida, o soprar por um tubo de bambu ou de metal, a percussão de uma esticada e seca pele de boi numa caixa de ressonância, o tinir de metais, o canto multíssono e multímodo das aves; o plano e o volume, o áspero e o macio, o duro e o mole, os contornos boleados das dunas ou de um corpo de mulher, o mármore e o bronze, o cinzel arrancando ao seio da madeira as três dimensões de uma forma sonhada..., que sabia eu?... Podia haver arte na matemática do movimento, adianta Diogo como a medo.
Sim, era verdade. A harmonia celeste, a concinnitas das esferas celestes de que falava Cícero no Sonho de Cipião e que, segundo Pitágoras, gerava uma melodia astral. Movimento e sinfonia! Eis duas artes que se casavam na dança. Ou melhor: na dança casavam-se três artes: o movimento, a música e a escultura. Não se esquecesse o amigo de que os dançarinos eram estátuas arrancadas à sua estática imobilidade, que não estavam mas se moviam... Não achava Diogo? Podia eu acrescentar mais uma, visto estar presente o elemento visual. Tinha ele muita razão. Portanto, nos sentidos, como na sociedade, havia os nobres e havia os..., ... os pobres!, rematava o meu companheiro com uma gargalhada a coroar a rima, e concluía: os sentidos nobres eram a vista, o ouvido e o tacto... Os pobres ... Os pobres são o olfato e o paladar. Ora eu gostaria de reabilitar estes sentidos pobres, fazer por exemplo a tal sinfonia de perfumes... Não me digas que também pretendes compor um Gloria Patri com os sabores de um refogado, de um coelho à moda do Alentejo, de... Mas a ideia era essa precisamente! Não estava a ver? Contudo era preciso elevar os paladares às alturas da arte e do génio. Um Gloria não o imaginava com o sabor do estrugido, mas o do coelho na caçarola vinha a matar, se Diogo o pusesse de véspera em vinha de alho, com a folha de louro e muitas ervas cheirosas como o tomilho, a carqueja, os orégãos, a hortelã, a salsa. Quem mo dera ter ali naquele momento, que era um glorificar ao Criador que tão boas coisas nos dera !...  Amem !
Dois dias depois estamos às portas de Évora, falamos dos meus escrúpulos em tomar hábito, das minhas hesitações, de Hércules e da encruzilhada, do bívio pitagórico, e, por escolha de Diogo, metemos pelo caminho errado, que nos afasta da cidade, sem qualquer espécie de oposição da minha parte, que via nisso o adiamento de uma definitiva resolução. O aqueduto, linha de referência a apontar-nos Évora, deixara de se avistar. Diogo nem reparara no facto. Está descendo o crepúsculo. Numa volta da vereda aparece uma pequena casa sombreada de pinheiros mansos que desenham uma suave mancha verde-anil na neblina da paisagem dourada pelos últimos raios de sol. Uma moça de uns dezoito anos tira água do poço quando nos aproximamos. Deus a salvasse! Se lhe dava uma púcara da água, pede Diogo. Sem uma palavra, ela mergulha um tarro de cortiça na selha e oferece-lho. Diogo bebe lentamente, consoladamente. Ela observa-o, depois olha para mim. Também tens sede? Tinha, respondo-lhe eu. Mas, desde que estou a olhar para ti, a minha sede é outra. Diogo, atónito, pára de beber. Ela serenamente tira-lhe o tarro da mão, deita fora o que resta da água, enche-o de novo olhando-me de soslaio, com um sorriso brejeiro, e apresenta-mo: a tua sede é desta água, loiraço duma figa!» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT