sábado, 9 de novembro de 2019

O Mito de Portugal nas suas Raízes Culturais. Manuel C. Pimentel. «Pessoa seria, aliás, o primeiro a ver a dimensão linguística intercultural do mito de Portugal na forma como apontou para a singular osmose do Quinto Império com a língua portuguesa»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O Mito é o nada que é tudo». In Fernando Pessoa

História concisa do mito de Portugal
«(…) As cicatrizes do ideário do decadentismo cultural, político e económico subsistiram no conceito do Portugal periférico, cauda da Europa, afastado por tragédia dos grandes centros civilizacionais europeus, que gerou inclusive a dúvida sobre a nossa existência de cultura, de literatura e de filosofia, que habita ainda hoje nas consciências ofuscadas pela luz do mito europeu e, mais recentemente, dos Estados Unidos da América. Tanto foi por vezes o opróbrio, que a própria língua portuguesa, que no quadro linguístico global rivaliza em comunidade falante com outras línguas (por exemplo, o alemão), recebeu o epíteto de mais literária do que filosófica, o que também serviu, no século XX, à vexata quaestio da incapacidade portuguesa para a filosofia, contra a qual se ergueram Afonso Botelho, Álvaro Ribeiro, António Quadros, Francisco Gama Caeiro, João Ferreira, José Marinho, padre Manuel Antunes, Pinharanda Gomes, entre outros. Levada pelos portugueses dos Descobrimentos a dois terços do globo, a língua portuguesa é hoje falada nos cinco continentes, ascendendo a mais de duzentos milhões o número dos seus falantes. Língua culta e internacional, o português estabelece pontes intercontinentais e constitui o cimento da nossa interculturalidade. A sua dispersão geográfica assinala o multiculturalismo dos povos que a falam, pelo que é nela que Portugal situa a memória do mapa-múndi da sua gesta imperial.
Não é de estranhar que em torno da dimensão intercultural da língua tenha girado o imaginário mítico português para ver nela a supervivência do império perdido, a justificar até a defesa de uma missão de Portugal como mediador de diálogo entre os povos e nos conflitos internacionais. Este Portugal medianeiro é, porventura, a imagem hodierna que procura resgatar a grandeza do Portugal de outrora, como saída da situação periférica em que as circunstâncias históricas do pós-25 de Abril o colocaram. Não foi por acaso que Fernando Pessoa sublinhou a coincidência da pátria com a língua portuguesa, pela boca do semi-heterónimo Bernardo Soares, e a relação íntima da língua com o império, o quinto, ao evocar, na Mensagem, a figura de Vieira, Imperador da Língua Portuguesa. Pessoa seria, aliás, o primeiro a ver a dimensão linguística intercultural do mito de Portugal na forma como apontou para a singular osmose do Quinto Império com a língua portuguesa.
O destino dessa osmose iria confundir-se no paracletismo de muitas teses, sobretudo as de Agostinho da Silva, que apontariam para as virtualidades sebásticas da própria língua, feita autor e agente da perdida missão do Portugal do império, sobretudo quando este morreu às portas do Portugal de Abril, abandonadas as colónias e para sempre perdida a última luz vinda do império que o Estado Novo e a política de Salazar tentaram ressuscitar em África. O Estado Novo foi, em política, em pedagogia e em propaganda, uma poderosa máquina construtora de mitos e fazedora de heróis, que muito bem uniu a história à ideologia, pondo a primeira, e por esta, ao serviço da pedagogia, numa das mais bem conseguidas campanhas de mentalização colectiva de que há memória na nossa cultura, que nem o ideário dos velhos republicanos e o positivismo de um Teófilo Braga haviam conseguido para os esteios nacionalistas e antimonárquicos da Primeira República.
A política do Estado Novo conseguiu a uniformidade da cultura educativa, impôs às gerações uma visão nacionalista homogénea da História de Portugal, organizou o teatro das mentalidades em torno dos três grandes eixos de Deus, Pátria e Família, redimensionou o passado nacional, explorando-lhe os valores simbólicos, as memórias colectivas, os estratos míticos, e promoveu por eles a socialização massiva e programática da autoconsciência nacional. Foi a maior instrumentalização política do mito de Portugal, que superou o campo de toda a historiografia ideológica anterior e que criou uma identidade cultural subtraída à problematização e à crítica.
Sobrevindo o 25 de Abril, a corrosão daquela identidade cultural pelo repúdio sistemático do recente passado da ditadura deixou naturalmente os Portugueses a braços com a sua própria imagem. Foi o tempo da destruição dos mitos e dos símbolos de Portugal, aqueles que o regime anterior havia identificado com o seu próprio projecto de quatro décadas de socialização política, e o tempo de uma crise identitária que viria a dar os seus frutos. A revolução de Abril e a pátria nova prometida pelos políticos e pelas novas ideologias comporiam uma nova imagem para o Portugal pós-revolucionário: a do Portugal democrático e europeu». In Manuel Cândido Pimentel, O Mito de Portugal nas suas Raízes Culturais, Wikipedia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT