quinta-feira, 28 de novembro de 2019

O Pavilhão Púrpura. José Rodrigues dos Santos. «Colapso? Crash? Falências? Caramba, que palavras tão dramáticas os camones gostavam de usar! Como tinha de dar resposta ao exercício e não fazia a menor ideia daquilo de que os tipos da universidade…»

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«(…) A Ásia, para onde as nossas atenções se irão voltar com crescente pormenor, atravessava também um momento de grande turbulência e choque entre as ideias das diferentes ditaduras de origem marxista, as comunistas e as fascistas. A China vivia o período unificador das Expedições do Norte, quando o Kuomintang e o Partido Comunista se uniram contra os senhores da guerra e depois se desentenderam. A minha Lian-hua, apenas um ano mais velha que a Nadija, vivia no Jardim das Flores Esplendorosas, a quinta da família, e fora raptada pelos comunistas do bando de Mao Tse-tung. O pai pedira ajuda ao Kuomintang, mas a verdade é que ela estava nas mãos do inimigo e fora levada para parte incerta. O sequestro permitira a Lian-hua ver como agiam os guerrilheiros comunistas e a menina acabou forçada a integrar uma unidade que tinha por missão atacar os proprietários de terras para fomentar a grande revolução que supostamente desembocaria na ditadura do proletariado do socialismo e depois no comunismo sem classes. A acção, contudo, correra mal e ela viu-se sozinha num mato infestado de tigres. Como escaparia? Pela mesma altura, e do outro lado do mar da China, o Japão parecia tranquilo. Parecia. O meu amigo Fukui, cujo pai fora morto por assassinos shikaku provavelmente enviados pelos velhos inimigos da família Satake, os Miyamoto, embrenhava-se na ciência política e ia concluindo que o Japão precisava de se afastar das ideias tradicionais do xintoísmo e do confucianismo e de abraçar a modernidade ocidental em toda a sua plenitude. Fukui constatara que os seus antepassados pelo lado da mãe eram cristãos de Nagasaki, quem sabe se portugueses?, e a descoberta acicatara-lhe a curiosidade.
Pois agora, amigo leitor, vou relatar-lhe o que sucedeu a seguir. Convém termos presente que naquela época a informação não circulava com a rapidez com que hoje se expande, apesar da telegrafia e da recente popularização da telefonia, a que agora se chama rádio. É por isso que não consigo reprimir um sorriso sempre que penso na maneira como tive conhecimento daquele que veio a revelar-se um dos mais importantes de todos os acontecimentos da década de 1920 e na forma como então reagi. Não foi pelos jornais que soube do que se passava, não foi por telegrama, não foi sequer através da telefonia. Foi graças a uma pergunta que me chegou por carta. Eu explico. Na altura era ainda jovem e estava a tirar um curso de Economia por correspondência de uma universidade americana, o Instituto Superior de Chicago e do Montana. Acontece que, no início de 1930, eles me mandaram um exercício. A primeira pergunta era sobre os motivos do colapso da Bolsa de Nova Iorque uns meses antes, em Outubro de 1929, e a segunda dizia respeito às relações de causa-efeito entre o crash de Wall Street e a vaga de falências que se desencadeou na América. Fiquei admirado com estas perguntas pois nunca ouvira falar em tal assunto. Colapso? Crash? Falências? Caramba, que palavras tão dramáticas os camones gostavam de usar! Como tinha de dar resposta ao exercício e não fazia a menor ideia daquilo de que os tipos da universidade estavam a falar, fui ter com o Custódio, um amigo que trabalhava no BNU, e perguntei-lhe o que se passava com a Bolsa de Nova Iorque.
Pois, parece que há uns problemas, disse ele. Noutro dia vieram aqui os bifes do Hong Kong and Shanghai Bank e vi-os muito preocupados. Por quê?, admirei-me eu. O crash é lá na América… Isso não é assim tão simples, explicou o meu amigo. Há o problema do contágio. Repara, os americanos têm muitos investimentos aqui no Oriente e também na Europa. Como as empresas americanas estão a ir à falência ou a enfrentar grandes dificuldades, começaram a retirar o dinheiro que investiram no estrangeiro. Preferem ter esse dinheiro na América para não irem também à falência, estás a ver? Além disso parece que o governo americano ergueu barreiras alfandegárias destinadas a impedir as importações e assim proteger a indústria do seu país, o que significa que aqui na Ásia estamos com dificuldade em vender os nossos produtos para a América. Consta que na Europa andam a enfrentar o mesmo tipo de complicações na exportação dos produtos deles. E então? Qual é o problema dessas barreiras alfandegárias? Custódio olhou-me fixamente. Pensa bem, Jorge. Se os americanos deixam de comprar o que produzimos, quem comprará?
Confesso que não tive resposta para a pergunta, mas apesar de todas estas informações fiquei céptico. Não me pareceu credível que uns probleminhas quaisquer na Bolsa de Nova Iorque pudessem afectar assim tanto a nossa vida no outro lado do planeta. Que os ingleses do Hong Kong and Shanghai Bank estivessem assustados até achei normal, pois era natural que o banco tivesse muitos investimentos na América e a vaga de falências criasse receios. Agora que uma questão destas nos tocasse no dia-a-dia? Não, nem pensar! O Custódio bem podia falar em contágio e noutras expressões do foro médico e epidemiológico, mas para ser franco tudo aquilo se me afigurou um exagero. Com as explicações que obtive no BNU lá respondi às perguntas que constavam do exercício do Instituto Superior de Chicago e do Montana, meti tudo no correio e não me preocupei mais com o assunto. Tinha de resto a nítida sensação de que a realidade descrita nessas minhas respostas pertencia a um mundo que não era meu; tratava-se de uma espécie de universo paralelo onde a economia não possuía a menor correspondência com a realidade na qual eu e o resto do planeta vivíamos. Não decorria a vida normalmente em Macau? Não era a nossa existência marcada pela mesma modorra prazenteira de sempre? Para que nos interessava realmente o dito crash em Nova Iorque?» In José Rodrigues dos Santos, O Pavilhão Púrpura, Gradiva, 2016, ISBN 978-989-616-709-7.

Cortesia de Gradiva/JDACT