sábado, 30 de novembro de 2019

O Pecado e a Honra. Maria João Câmara. «A cerimónia deveria ser por volta do meio-dia e já passava da uma hora da tarde. Teria acontecido alguma coisa? Maria.Jácome, assim se chamava a noiva de dezanove anos, de boa cara…»

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«(…) Nesse dia, Rodrigo Figueira entrou na igreja, trajando o seu melhor fato. O excelente veludo de seda da sua capa brilhava, mesmo com a luz fosca das velas que iluminavam o templo. Vislumbrou ao fundo o padre Bartolomeu. O sacerdote, de estatura baixa e rosto muito redondo e avermelhado, abria os braços, como que a recebê-lo. Bom dia! Como está vossa mercê? De boa disposição?, e acompanhava as perguntas com gestos um tanto teatrais. O cumprimento foi retribuído pelo fidalgo como uma obrigação de cortesia, sem convicção. Oh, sim, sim..., de mui boa disposição, disse sem grande entusiasmo, quase distraído, mais concentrado no passo que ia dar nesse dia, nessa cerimónia. Tomai assento, pois que uma noiva nunca, e insistiu, mas nunca, chega no tempo marcado. Sabeis como são complicados os toucados e os fatos, e sabe Deus que mais!..., afirmou, imitando os gestos femininos com meneios das mãos, fingindo ter sobre a sua careca um elaborado penteado.
Rodrigo Figueira sorriu e aceitou a sugestão, aguardando serenamente a chegada da noiva. Os seus sapatos, de um negro impecavelmente brilhante, revirados na ponta, começavam a incomodar as frieiras que tinha desde que os primeiros ventos haviam trazido o frio do Norte. Estava-se em Fevereiro e o sol espreitava, destemido e transparente, de um céu azul-turquesa. Um bom dia para o seu casamento! Entretanto, celebravam-se alguns ofícios de defuntos nas capelas laterais. As suas ladainhas ouviam-se, ininterruptas e constantes, como zumbidos de abelhas em volta das flores na Primavera. Fazia-se tarde. Rodrigo tentava distrair-se com o povo que entrava na igreja, gente que se benzia, baixava e levantava a cabeça em largos gestos repetidos, bichanava orações frente às imagens de sua devoção, percorria o perímetro da nave da igreja e saía do mesmo modo, mas já com a certeza de que os santos a quem pedira teriam ouvido as suas preces.
A cerimónia deveria ser por volta do meio-dia e já passava da uma hora da tarde. Teria acontecido alguma coisa? Maria.Jácome, assim se chamava a noiva de dezanove anos, de boa cara, um pouco sofrida e pesada para a sua idade, tinha um sorriso simpático e era bastante calada, segundo Rodrigo se apercebera nas poucas vezes que estivera com ela. Mas, além de alguns sinais salientes que marcavam a maçã do rosto do lado direito, não havia na sua aparência nada que a tornasse verdadeiramente feia, embora nada a fizesse especialmente bonita. Era aquele tipo de mulher que geralmente passava despercebido. Todavia, debaixo de uma aparente bonomia, Maria tinha os seus quereres. Devia ser o seu sangue herdado de Inês Sousa, sua mãe, um sangue alentejano, moldado por planuras sem fim, crestadas pelo calor abrasador e seco ou vergastadas pelo vento gélido e solitário. O pai da noiva, Pedro Jácome, era fidalgo estimado da casa do infante Fernando, pai do futuro rei Manuel I, homem da sua guarda pessoal.
Quanto a Rodrigo Figueira, o noivo expectante, era filho de Brites Alves, herdeira da enorme fortuna de seu pai, consubstanciada numa vastidão de terras ao redor da cidade de Santarém, e de Henrique Figueira, escrivão da Fazenda de Afonso V e muito seu privado. Brites falecera havia alguns anos, deixando os filhos ricos o bastante. Os irmãos de Rodrigo, Aires e João Lourenço, aguardavam calmamente no adro da igreja onde uma chusma de curiosos começava a ajuntar-se. Talvez por causa do hábito da Ordem Militar de Malta, branco e negro com a cruz de oito pontas que Aires envergava... Os olhares desviavam-se quando ele passava e uma aura de respeito e admiração rodeava-o desde que chegara a Lisboa. Aires viera do mosteiro Flor da Rosa. onde professara. Pedira licença ao mestre para ir para um local onde pudesse ter mais acção como cavaleiro militar sendo então designado para ir para Rodes, onde ficava a sede da Ordem. Estava. Pois, prestes a partir para esta ilha onde eram necessários cavaleiros dispostos ao sacrifício, uma vez que era constantemente atacada pelo Turco. Ainda no ano anterior, Maomé II, imperador otomano, a havia assediado, tendo sido então rechaçado. A derrota foi tão afrontosa para aquele imperador que, quando morreu. mandou que se escrevesse na sua sepultura o seguinte epitáfio: desejo conquistar Rodes e a Itália. Sonhos vãos, os dos defuntos! Quanto a Aires, levaria com ele a coragem dos cavaleiros portugueses e contribuiria para a salvação da cristandade!» In Maria João Câmara, O Pecado e a Honra, Oficina do Livro, Leya, 2012, ISBN 978-989-555-830-8.

Cortesia de OdoLivro/JDACT