sexta-feira, 29 de novembro de 2019

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Coitados. Não viam o bem que esse homem fez ao mundo, um beneficio ainda sentido nos dias de hoje e nos que virão»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Viena vivia os primeiros dias de frio. Os aquecimentos ligavam-se para confortar os corações, tirava-se a roupa quente dos armários, compravam-se os novos agasalhos da moda. Hans gostava de dar os seus passeios diários pela Ringstrasse, alheio à chuva gelada e ao frio cortante, corrompendo o ar com baforadas de vapor quente. Fechava os olhos e sentia a respiração, durante alguns instantes. Deambulava sem destino certo, como a vida. Dizia-se que Freud também os dava e não lhe era difícil compreender a razão. A vida pululava indiferente. Os sorrisos, os gritos, alguém a chamar o nome de alguém, as lojas iluminadas e apelativas. Por vezes passava no Café Schwartzenberg para tomar um café quente e era obrigatório, a certa altura, ir folhear os livros à Thalia e os jornais, se ainda não os tivesse lido. Não encontrou qualquer menção ao seu caso. Não era de admirar, a congregação não publicitava o seu trabalho. Já chegava toda a atenção de que era vítima nas aulas de História, por esse mundo fora, bem como os ataques cerrados de certos historiadores que, de tempos a tempos, se lembravam da chacina, como lhe chamavam, dos massacres dispensáveis, de uma limpeza muito bem planeada. Alguns até embandeiravam em arco exigindo que se retirasse São Domingos da lista oficial dos santos católicos. Coitados. Não viam o bem que esse homem fez ao mundo, um beneficio ainda sentido nos dias de hoje e nos que virão. Endemoninhar o homem que viu mais além e que não se coibiu de mais nada a não ser olhar pelo bem-estar da Santa Madre Igreja e repelir as ameaças. Bem falta fazia nos tempos que correm.
Hans não era tão obtuso. São Paulo, São Tomás de Aquino. Santo Agostinho deviam ser todos despromovidos, juntamente com São Domingos. Cogitava, mas não dizia em voz alta, embora dissesse outras coisas. Era por causa de pessoas assim como São Domingos, que o padre, Hans Schmidt iria ser julgado no Vaticano. Apesar de ter visto as suas funções suspensas, há quase um ano, padre ainda era o termo correcto. É certo que a ele não incomodava que o tratassem por senhor Schmidt em vez de padre Schmidt. A intimação trazia o seu nome completo, Hans Matthaus Schmidt, antecedido pela menção de oficio. A congregação não tinha por hábito eliminar os epítetos anteriores dos acusados. Inocentes até prova em contrário. Apesar de não oficialmente condenado sentia-se como no purgatório onde ainda não sabia se lhe calharia o Céu ou o Inferno. No entanto, sabia que a congregação já escolhera. Nas palavras de alguns historiadores anódinos, em caso de dúvida mandava-se queimar. E hoje em dia havia muitas maneiras de queimar sem fogo, Hans Schmidt fora avisado por familiares e amigos chegados. Cuidado com o que dizes e escreves. Isso pode ter um preço. Candidamente, foram-se afastando, aos poucos, com os seus conselhos evitando a sua presença. Persona non grata talvez fosse um termo demasiado duro, mas o que dizer de alguém que deixou de ser convidado para os círculos sociais e familiares?

A mãe haveria de concordar com ele se fosse viva. Do pai não rezava a história, pelo menos no seu livro. Cresceu sem uma voz masculina permanente nos arredores da capital, em Essling, em plena Segunda Guerra Mundial. Havia desculpa para tudo nessa altura. Não se lembrava desses tempos, ainda bem, mas lembrava-se do Landtmann e de quando o viu com a esposa e os três filhos petizes, num dia em que regressava do seminário, já a guerra ia longe. Que pai dedicado. Não dispensou um único olhar a Hans ou não o conheceu. Limpava os lábios da menina mais nova com ternura, ignorando o mais velho ali, a olhar para ele, fruto de uma outra vida. Já não se recordava como soube que era ele. A mãe haveria de concordar com o que Hans dizia e escrevia, ainda que fosse profundamente católica e devota do bom papa João, que Deus o guardasse e guardava. A Ringstrasse parecia-lhe diferente neste dia. Repleta de vidas, como sempre, mas com nuances diferentes. Ou então seria impressão sua. Passou na frente do Landtmann e deu por si a olhar para o interior como nesse dia longínquo em que viu o pai. Quiçá não estaria ali agora, decrépito, engelhado pelos anos? Nunca mais o viu desde esse regresso do seminário. Também não seria hoje. As mesas estavam quase todas ocupadas, mas ninguém preenchia o requisito. Porventura já dormiria em paz num qualquer cemitério de Viena. Freud haveria de gostar de Hans. Freud haveria de gostar de o analisar, ali, numa das mesas do Landtmann, que frequentava». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT