terça-feira, 12 de novembro de 2019

O Prisioneiro da Torre Velha. Quare? Fernando Campos. «Ficava-nos também na amada terra. O coração, que as mágoas lá deixavam…»

jdact

O Naufrágio
«(…) Finalmente, uma quarta-feira pela manhã, vinte e quatro de Setembro, faz-se à vela a armada. Tanta mocidade, força de ânimo, confiança de longa vida se embarcam nestes seis poderosos navios! Comanda-os dom Manuel. Este, em que sigo, é a capitana. Aquele é a almiranta, seu chefe Antonio Moniz. Além, o galeão São Joseph, que tocou a António Meneses. Mais além, o galeão Santiago, capitaneado por Gonçalo Sousa. A seguir o galeão São Felipe, Que tem por cabo a Manuel Dias Andrade. Por último, a urca Santa Isabel, que governa Cristóvão Cabral. À procura de que rosto, de que gesto, de que adeus ou até-à-vista prescrutam os meus olhos a multidão que acena lenços chorosos? Não quis eu que minha mãe nem minha irmã viessem à despedida? Saímos a barra e fazemo-nos ao largo. Da amurada, olho longamente a embocadura do Tejo a desaparecer. Àquela hora, talvez…, o sim na igreja, a boda alegre e, logo à noite..., meu salgueiro em flor, murmúrio do chafariz, andorinhas a aquietar-se nos ninhos... Mar e céu, solidão, por confidente o papel, buscar o esquecimento na acção perigosa...

A costa já mal se distingue, a serra de Sintra e cinza anilada a esfumar-se...

Ficava-nos também na amada terra
O coração, que as mágoas lá deixavam…

Ouviu-me o general? Um braço forte pousa-me no ombro: magoado como ele?
Sorrio, engolindo as lágrimas na garganta, soldado não chora, em silêncio alongando a vista o mais que posso à terra. Manuel afasta-se respeitando a minha despedida. Depois acordo ao sentir-lhe as palavras junto de capelão-mor: desaparecido el-rei Sebastião I, por alguns anos ainda se manteve o costume. Os nossos jovens fidalgos, para poderem cingir a espada, passavam a Africa…, ...provavam a valentia..., ...e eram arnados cavaleiros. Transferiram depois os reis estranhos estas cerimónias para as armadas da costa… ...comutados os três anos de Africa em cinco de embarcados. Franciscano alegre frei Paulo Estrela, dos seus trinta anos, olhos vivos, cabelos e barbas aloirados, as mãos muito brancas e magras, a voz macia mas estranhamente grave em corpo tão franzino. Durante a viagem, tive ocasião de com ele estreitar amizade. Afastava-se agora com o general pelo convés adiante. Grande é a faina a bordo, mestre Joaquim grita ordens, correm os moços esforçados. Segundo a ordenança, procura-se conservar a navegação cinquenta léguas apartada da costa e bordejar até vinte de Outubro. Se as naus da Índia não aparecerem até esse tempo, o governo de Portugal disporá o que for mister.
Terça-feira, trinta de Setembro, rezava o diário de bordo. Navegávamos les-sueste, por todo o quarto de alva, ou modorra como lhe chama a gente rude, que é a terceira vigia da noite. Ao romper da manhã. Um escudeiro fidalgo vem postar-se a meu lado na amurada: é a tua primeira vez? É, olho-o como a interrogar-me quem seja. Pedro de Góis, para te servir. Francisco Manuel. Muita honra. Nos Aventureiros? Sim. E tu?» In Fernando Campos, O Prisioneiro da Torre Velha, Quare?, 2003, Difel SA, 2003, ISBN 972-290-669-0.

Cortesia de Difel/JDACT