domingo, 17 de novembro de 2019

Os Pecados da Rainha Santa Isabel. António Cândido Franco. «O levantamento teria o apoio dos ricos-homens e dos mesteirais e levaria a todas as bocas do orbe cristão, a luta do império e do papado»

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«(…) Mas as consequências do abalo não ficaram por aí. Também Aragão tremeu. As fundações da federação aragonesa-catalã eram rijas, mas o reino estava descabeçado e sem ordem. A batalha, goela aberta e funda, maré-cheia de inesperados destroços, levara o rei e engolira na onda gigante uma parcela de monta do escol militar. O herdeiro, uma criança com oito anos, fora aprisionado nos cárceres da alcáçova de Carcassone e lá esperava o seu destino. Corria que Simão Monforte o mandaria executar em breve pelo mesmo carrasco que degolara o jovem Raimundo Trencavel. Fazia-se fé que depois do fim de Jaime I o exército dos cruzados, entusiasmado por tão decisiva campanha, passaria os Pirenéus, engolindo na passagem o reino de Aragão e o condado de Barcelona, cuja fama herética era tão sulfurosa como a do de Toulouse. O mesmo abade do Demo que o fez visconde nas masmorras de Carcassone e depois conde nas de Toulouse, o faria malogrado nas de Saragoça e de Barcelona, sussurravam, impotentes e furiosos, os ricos-homens de Aragão que haviam escapado vivos do desastre de Muret.
O papa não esteve porém pelos ajustes. Caso a desordem incendiasse as terras de Saragoça e de Barcelona, o rei da Sicília, o futuro Frederico II, levantar-se-ia em armas, mais tarde ou mais cedo, exigindo para a esposa o trono da confederação. Estava casado com uma irmã de Pedro II, Constança de Aragão, na qual, na ausência de Jaime I, recaia a coroa do reino. O levantamento teria o apoio dos ricos-homens e dos mesteirais e levaria a todas as bocas do orbe cristão, a luta do império e do papado. Frederico Hohenstaufen era então um jovem de dezanove anos, que devia a sua ascensão à protecção interessada de Inocêncio III. Iniciara porém uma administração da Sicília em jeito de novidade, tomando a indulgência religiosa como alicerce. As chamadas heresias cristãs eram toleradas e viviam em meia paz, sem serem importunadas. Os judeus frequentavam as esnogas com a mesma segurança com que um cristão entrava no templo onde se guardava o santo cibo. E até os muçulmanos gozavam duma liberdade inusitada, mostrando o jovem soberano uma singular inclinação pelas formas recessas da mística islâmica. O caso fazia escândalo numa Igreja que tomava por gangrena qualquer desvio. Mas pior que a indignação, era a inquietação, pois tudo corria na propinquidade dos Estados do papa. Naquele tempo o reino da Sicília não se ficava pelo triângulo do Etna mas entrava pelo continente, subindo no Adriático quase até Ancona e no mar Tirreno até às margens do Tibre.
Melhor me vai o herdeiro de Aragão como refém que como cadáver, declarou o papa, tudo ponderando, quando lhe falaram nos propósitos desmedidos do novo conde de Toulouse. Mandou suspender a execução do filho de Pedro II e negociou com os templários de Narbona a hospedagem da criança. A coroa de Aragão salvava-se mas ficava refém do papa. O futuro do reino, depois daquela hecatombe, era incerto como o destino duma flor emurchecida pela geada tardia. Inocêncio III, conde de Segni, via-se nessa época como um homem que acabava de ganhar o bastante para se retirar satisfeito, não para deitar tudo a perder num gesto perdulário. Tinha outros negócios onde aplicar o que de turbulência lhe restava; Aragão ficava-lhe bem assim de cariz dobrado e língua decepada nos condados da Gália meridional. O que agora lhe ia era uma expedição de cruz e arrocho à Prússia pagã, na ponta da Europa, depois do Elba, nas praias frias e cinzentas do mar Báltico. Permita-me o leitor uma palavra mais demorada sobre Inocêncio III, verdadeiro causídico da época. Forjara em jovem a sua ambição na luta da Igreja contra o primeiro Frederico. Batera-se depois pela cadeira do apóstolo Pedro, afirmando que a Igreja só veria o porvir se avançasse pelo princípio de Alexandre III, que reservara ao papa a autoridade soberana e deixara aos reis o mero poder de administração. Quando se sentara no sólio, prometera um pontificado decisivo na vassalagem da Cristandade à Santa Sé». In António Cândido Franco, Os Pecados da Rainha Santa Isabel, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-289-2.

Cortesia de Ésquilo/JDACT