quinta-feira, 29 de maio de 2014

A Geração de 70 - Uma Revolução Cultural e Literária. Álvaro Manuel Machado. «... os transcendentes recantos aonde o bom Deus se mete, sem fazer caso dos Santos, a conversar com Garrett! Deslumbrado, toquei o cotovelo de um camarada, que murmurou, por entre os lábios abertos de gosto e pasmo: - É o Antero!...»

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Ramalho Ortigão ou o Republicanismo pequeno-burguês
«(…) O melhor testemunho que temos deste primeiro período da influência intelectual de Antero na geração estudantil coimbrã dos anos 60, é talvez o de Eça de Queirós, num texto evocativo do poeta e publicado em 1896. Em Coimbra, uma noite, noite macia de Abril ou Maio, atravessando lentamente com as minhas sebentas na algibeira o Largo da Feira, avistei sobre as escadarias da Sé Nova, romanticamente batidas da lua, que nesses tempos ainda era romântica, um homem, de pé, que improvisava. A sua face, a grenha densa e loura com lampejos fulvos, a barba de um ruivo mais escuro, frisada e aguda, à maneira sírica, reluziam, aureoladas. (...) Parei, seduzido, com a impressão de que não era aquele um repentista picaresco ou amavioso, como os vates do antiquíssimo século XVIII, mas um Bardo, um Bardo dos tempos novos, despertando almas, anunciando verdades. O homem, com efeito, cantava o Céu, o Infinito, os mundos que rolam carregados de humanidade, a luz suprema habitada pela ideia pura, e:

... os transcendentes recantos
aonde o bom Deus se mete,
sem fazer caso dos Santos,
a conversar com Garrett!

Deslumbrado, toquei o cotovelo de um camarada, que murmurou, por entre os lábios abertos de gosto e pasmo: - É o Antero!...

E, mais adiante, Eça evoca o primeiro encontro a sós com Antero, dando-nos dele, com invulgar sentido psicológico, uma imagem verdadeiramente nietzschiana: Intimidade, porém, com aquele que eu depois chamava Santo Antero, só verdadeiramente começou na manhã em que o visitei, com muita curiosidade e muita timidez, na sua casa do Largo de S. João. (...) Fascinado, surdi do vão da janela onde me refugiara, e parando à borda da mesa: - Oh Antero, quanta ordem você tem na destruição! Ele dardejou sobre mim dois olhares devoradores. Depois, considerou, ainda enrugado, a pilha acertada de papéis cortados e, um sorriso, aquele sorriso de Antero que era como um sol nascente, iluminou, fez toda clara e rósea a sua boa face onde havia um não sei quê de filósofo de Alexandria e de piloto do Báltico: - O ritmo, murmurou, é necessário mesmo no delírio. Isto passou-se, como diz ainda Eça, na Coimbra de tão lavados e doces ares, em 1862 ou 1863, essa Coimbra que vivia num grande tumulto mental com a chegada por caminho de ferro, vindos da França e da Alemanha, de torrentes de coisas novas, ideias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses humanitários... Ou seja, pêle-mêle, leituras de Michelet, Hugo, Taine, Vico, Hegel, Proudhon, Heine, Baudelaire e Darwin. Eça descobre mesmo, com deslumbramento, a Bíblia! Mas o que Eça descobre, sobretudo, como o fizera já Antero, é a Humanidade. A geração de Antero e de Eça começa a amar a Humanidade, como há pouco, no ultra-romantismo, se amara Elvira, vestida de cassa branca ao luar.
Na altura em que Eça encontra Antero, já este tinha publicado os primeiros Sonetos (1861) e Béatrice (1863), mais tarde inclusos nos Sonetos Completos. Mas é com as Odes Modernas, livro publicado em 1865 (um ano depois da Visão dos Tempos de Teófilo Braga) que Antero inicia um novo período na literatura portuguesa, período a que António Sérgio, muito justamente, chamou terceiro romantismo. De facto, se as Odes Modernas se separam radicalmente do romantismo de Castilho, designado pelo mesmo António Sérgio o segundo romantismo, elas retomam os grandes temas do primeiro romantismo de Herculano, isto é, as supremas preocupações humanistas, universalistas (em Herculano, mais nacionalistas do que universalistas) e, sobretudo, sociais que já Herculano anunciara e que provinham em linha recta dos primeiros românticos alemães, mais do que dos românticos franceses, embora Vítor Hugo influenciasse nitidamente Antero nesta primeira fase. Romantismo, portanto, predominantemente filosófico, o mesmo que marcou a poesia de Novalis, de Hoelderlin, de Heine, como se pode ver por este soneto das Odes Modernas intitulado Tese e antítese, datado de 1870 e depois incluído nos Sonetos Completos:

Já não sei o que vale a nova ideia,
quando a vejo nas ruas desgrenhada,
torva no aspecto, à luz da barricada,
como bacante após lúbrica ceia!

Sanguinolento o olhar se lhe incendeia...
Respira fumo e fogo embriagada...
A deusa de alma vasta e sossegada
ei-la presa das fúrias de Medeia!

Um século irritado e truculento
chama à epilepsia pensamento,
verbo ao estampido de petouro e obus...

Mas a ideia é num mundo inalterável,
num cristalino céu que vive estável...
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!»

In Álvaro Manuel Machado, A Geração de 70 - Uma Revolução Cultural e Literária, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Livraria Bertrand, 1986.

Cortesia do Instituto Camões/JDACT