sábado, 17 de maio de 2014

Questionar a História. Ensaios sobre História de Portugal. António Borges Coelho. «Os profissionais do primeiro grupo (não se trata de equacionar capacidades pessoais) refugiavam-se então, em geral, nalgumas ciências técnicas, ditas auxiliares, e na história-armazém, na história-bricabraque de raridades, na história-loja de antiguidades…»

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A história faz-se (ou da prática actual dos profissionais de história)
«(…) A história-teoria é, feita, não paira, não se revela aos iluminados como Deus aos místicos, constitui antes o produto de um laborioso, complexo, técnico, colectivo e individual trabalho. Não será, pois, inadequado procurar saber, em rápida síntese, o que fazem os homens que actualmente produzem (investigando, ensinando) História, designadamente a tal História que à partida nos serviu de exemplo.

Antes de Abril de 1974
No longo período salazarista-caetanista creio que podemos discriminar dois núcleos principais de docentes e investigadores ligados à ciência da História: um núcleo oficial, o dos tolerados e subvencionados pelo sistema para reproduzirem a sua ideologia, investigadores engaiolados dentro de estreitos limites (tal não significou que não se transgredissem esses limites); e um núcleo não-oficial, à margem das universidades portuguesas, dos institutos, da Academia, alguns instalados nos liceus, inseridos naturalmente na ideologia compósita e até contraditória dos diferentes grupos sociais que directa ou indirectamente se opunham ou combatiam o sistema.
Do primeiro grupo, numeroso porque profissional, porque detentor de órgãos, de institutos, grupo repressor, silenciador (não se trata aqui dos indivíduos mas do grupo),
se excluíam ou eram excluídos, através da expulsão das universidades e de perseguições várias, os mais incómodos, os mais ingénuos, os menos apadrinhados. Com esta exclusão se alimentava regularmente o grupo não-oficial. Este segundo grupo dos não-oficiais, liderado por expulsos ou segregados da Universidade que encontraram asilo em França e noutros países, marcou profundamente a evolução da ciência histórica no nosso país. Uma obra colectiva, surgida entre os anos 1963-1971, o Dicionário da História de Portugal, para lá das lacunas e insuficiências, traduz não só a renovação operada no domínio da ciência da história como aglutinou os autores mais significativos das últimas décadas.
Os limites em que trabalhavam os oficiais eram tão estreitos que, aceitá-los à risca, implicaria a negação da própria ciência histórica, a qual, como toda a ciência, constitui um corpo organizado de conhecimentos que pretende com o passado ver o presente e o futuro. Tais limites mergulhavam as suas balizas no regime sufocante do fascismo português. Os comandos do aparelho do Estado, que sobrevivia pela supressão das liberdades essenciais através da censura, da repressão e do medo organizado pela polícia política (PIDE) e organizações fascistas, estavam nas mãos das famílias que dominavam os grandes grupos económicos e os latifúndios. A guerra colonial injusta em que o regime mergulhara o País tornava o ambiente social e político mais sufocante. Na base económica, uma agricultura atrasada, uma indústria recente e dominada, níveis de salários dos mais baixos da Europa, uma emigração que constituía uma hemorragia mortal de quadros jovens. Daí que todo o olhar claro fosse proibido; proibida a só aproximação das regiões mais quentes da História, época moderna e contemporânea, com a inevitável reflexão sobre contendas e lutas sociais que não haviam chegado ainda ao seu termo; ignorado e reprimido o curso legal das ciências sociais.
Os profissionais do primeiro grupo (não se trata de equacionar capacidades pessoais) refugiavam-se então, em geral, nalgumas ciências técnicas, ditas auxiliares, e na história-armazém, na história-bricabraque de raridades, na história-loja de antiguidades. Desta história já Descartes se persignara: narrativa de salão sobre a vida privada dos reis não tinha qualquer utilidade; úteis e necessárias para a sociedade dos homens eram a física e a medicina. Mas a tal história-armazém, a tal história-refúgio, cegava, entulhava o entendimento com pequeninos factos, com pequeninas contas com que os investigadores ornavam o colo empergaminhado. No altar da ciência histórica, imolava-se o corpo morto dos documentos. Atingia-se o êxtase na pequena família quando se erguia ao alto, ratado ou inteiro, um pergaminho desconhecido, de preferência heráldico. Para evitar os profanos rodeava-se o acesso aos arquivos de dificuldades, por vezes insuperáveis. Mas este culto do documento cansava logo após a leitura laboriosa e difícil das letras. O resto, a passagem para o outro mundo, a outra leitura, a leitura essencial, só era acessível aos génios amortalhados do passado ou aos seus herdeiros e vigários, facto tanto mais grave quanto era doutrina assente que a época dos Messias, como diria Leibniz, terminara». In António Borges Coelho, Questionar a História, Ensaios sobre História de Portugal, colecção Universitária, Editorial Caminho, Lisboa, 1983.

Cortesia Caminho/JDACT