segunda-feira, 26 de maio de 2014

Damião de Góis. The Life and Thought of a Portuguese Humanist. Elisabeth F Hirsch. «O que entra pela boca não produz o mal. Na defesa, Góis falou de banquetes na Flandres em que era corrente insistirem uns com os outros para beberem mais do que o necessário, citando de brincadeira em tais ocasiões a frase bíblica, sem que ninguém se tornasse suspeito»

jdact e wikipedia

Formação intelectual
«(…) Várias testemunhas que depuseram anos mais tarde perante o Supremo Tribunal em Portugal acusaram Góis de desobedecer às regras do jejum e de justificar essa transgressão com uma citação da Bíblia: O que entra pela boca não produz o mal. Na defesa, Góis falou de banquetes na Flandres em que era corrente insistirem uns com os outros para beberem mais do que o necessário, citando de brincadeira em tais ocasiões a frase bíblica, sem que ninguém se tornasse suspeito. Essa afirmação, além de dar uma ideia da natureza um tanto ou quanto rude das reuniões sociais dos amigos de Góis, reflecte também queixas habituais da parte das autoridades católicas sobre o desleixo com que se observavam as regras do jejum. Não há razão para pensar que Gois fosse uma excepção à inclinação generalizada para não levar muito a sério certas práticas do cristianismo.
A fim de se compreenderem os erros religiosos de Góis, assim como a maneira como explorou ideias protestantes, é preciso lembrar  que tinha o apoio duma considerável comunidade católica. A geração dos católicos nascidos na viragem do século vivia num estado de grande tensão e numa atmosfera de dúvida a que se misturavam esperanças duma renovação espiritual. Para muitos católicos, insatisfeitos com Roma, o Lutero da fase inicial era a resposta a preces feitas no segredo dos corações. Como Erasmo, seu líder reconhecido, não condenavam Lutero em absoluto, nem mesmo depois do seu rompimento com a Igreja Católica.
Foi nesse clima intelectual que Góis investigou o panorama do protestantismo, fosse onde fosse e sempre que se oferecia uma oportunidade e, em especial, durante a missão de 1531. Na Dinamarca o diálogo que travou com o governante protestante, o rei Frederido, teve tamanho êxito que, por sugestão do mesmo rei, fez uma paragem para visitar um conselheiro de Schleswig, que era então território dinamarquês. Parece que aí recebeu uma surpreendente lição de protestantismo. O seu anfitrião convidou-o a um jantar espectacular, como nunca tinha visto, e que lhe ficou para sempre na memória. Como logo a seguir Gois confessasse a heresia e explicasse o incidente numa carta ao rei João III, ele tinha a certeza de que os pormenores eram bem conhecidos, e portanto admitiu esses factos, sem reservas, aos inquisidores.
O conselheiro, seu anfitrião, era um protestante fervoroso. Levantou-se de repente durante o jantar e voltou com um cálice consagrado cheio de vinho branco. Virou-se para [Gois] com o cálice na mão, observando que estava a beber de um vaso que muitas vezes o tinha traído a ele e aos seus antepassados. Quando Góis protestou, o anfitrião sentiu-se incitado a fazer ainda mais demonstrações. Colocou o vaso diante de Gois e erguendo as mãos ao céu pediu a Deus que mudasse o vinho em sangue, mostrando desse modo um [autêntico] milagre. Finalmente, passou o vaso a Góis, insistindo com ele para que bebesse; e como Gois se recusasse, o conselheiro acusou-o de ser supersticioso.
Depois dessa cena singular seria de esperar que Gois hesitasse em se dar de novo com protestantes, mas tal não sucedeu. Prosseguindo de Schleswig para Lübeck, Gois teve conversações com o conhecido reformador Johann Bugenhagen sobre a reorganização que este planeava para a Igreja e, possivelmente, (embora Gois não o relatasse), sobre problemas religiosos de carácter geral. Contudo a Dinamarca, Schleswig e Luebeck não foram senão o prelúdio do capítulo fatal das relações de Gois com os protestantes, capítulo esse que começou com uma visita de dois dias e meio a Wittenberg em 1531. Gois divulgou aos inquisidores muitos pormenores dos encontros que teve com os reformadores dessa cidade, sem lhes contar a historia toda, e é preciso ler nas entrelinhas para perceber o que se passou.
A visita de Gois a Wittenberg teve lugar um mês depois de príncipes e de cidades protestantes se terem unido na chamada Liga de Schmalkalden; esse acto exprimia claramente a desconfiança agressiva que sentiam pelos católicos. Góis não prestou a mínima atenção ao estado de tensão que lá reinava, nem à ameaça que o episódio de Wittenberg poderia constituir para a sua reputação como católico. Ê possível que tivesse sido da opinião do seu colega, o diplomata polaco Dantiscus, que, depois de ter estado em Wittenberg em 1523, observou: Quem não viu nem Roma nem Wittenberg não viu coisa alguma». In Elisabeth Feist Hirsch, The Life and Thought of a Portuguese Humanist, The Hague Netherlands, 1967, Damião de Góis, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002, ISBN 972-31-0677-9.

Cortesia de FCG/JDACT