sábado, 31 de maio de 2014

Prosa no 31. Cartas do Extremo Oriente. Wenceslau Moraes. «… escritas umas aos 20 anos, outras mais de 15 anos passados, umas primitivamente impressas nos folhetins dos jornais, outras agora escolhidas por entre a papelada inútil de uma pobre gaveta de secretária, tem como única razão esta mesma dedicatória»

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Introdução
«(…) O tempo foi temperando e depurando sabiamente esta amizade: Wenceslau de Moraes enviava brinquedos à filha do amigo, confessava-lhe os seus segredos íntimos, pedia-lhe conselhos, solicitava-lhe favores e manifestava a sua profunda admiração em cartas que dirigia ao sobrinho, Joaquim Moraes Costa: Alegro-me em saber que o Dr. Peres Rodrigues e sua Esposa os visitaram, brindando-te com um aquário. Eu tenho o Dr. Rodrigues por um homem altamente superior; Portugal inteiro talvez não tenha cem indivíduos que o igualem; tu e tua irmã são ainda muito novos para o compreenderem completamente, só bem tarde talvez o possam apreciar como ele merece. No entretanto, devem estimá-lo muito, como um parente, como um amigo; abrirem-lhe o seu coração, não terem o menor segredo para ele; e finalmente seguirem todos os seus conselhos, pois só nele encontrarão guia seguro contra as grandes dificuldades da vida. Sólida amizade que foi veementemente lavrada em cartas e dedicatórias, das quais se destaca esta, que se encontra inédita, na Biblioteca Central da Marinha: A publicação destas páginas destonantes, escritas umas aos 20 anos, outras mais de 15 anos passados, umas primitivamente impressas nos folhetins dos jornais, outras agora escolhidas por entre a papelada inútil de uma pobre gaveta de secretária, tem como única razão esta mesma dedicatória. Fiz este livro para o oferecer a um amigo, que me desculpará a sua inutilidade, apreciando apenas a primeira página, como um penhor da minha cordial simpatia. Por sua vez, Sebastião Peres Rodrigues não era menos efusivo. Em carta inédita, dirigida a Wenceslau, afirmava nomeadamente: Outro companheiro como o Amigo é para mim, já não espero encontrar cá por esta vida. Na verdade, a sua disponibilidade era total o que o levou inclusivamente a pôr à disposição do escritor as suas economias para a publicação de um livro, a incentivá-lo constantemente e a dissipar as mágoas que o consumiam e o minavam gradualmente. Mais tarde foi seu procurador, tutor dos sobrinhos, com Almeida d'Eça, e contribuiu decisivamente para desbloquear o seu vencimento de Cônsul, em 1911.
No extenso testemunho referido anteriormente, Sebastião Peres Rodrigues evoca o seu primeiro encontro com Wenceslau do seguinte modo: Impressionou-me a figura e modos de W.: magro, de encurvado arcabouço, barba toda muito loira, olhos grandes de expressão bondosa e inteligente, não era um tipo vulgar, e a natural distinção impunha-se a quem lhe ouvisse o falar correcto, despretensioso, e a breve trecho revelando qualidades afectivas. […] Certo é que, desde os primeiros dias de viagem, longas conversas se travaram; gostos, hábitos e tendências se revelaram, surgindo a seguir a confidência dos seus lavores literários, dados a público no Diário da Manhã, sob a égide de Pinheiro Chagas, mas ao abrigo de um impenetrável pseudónimo.
Anos depois, Sebastião Peres Rodrigues insurgiu-se contra as alusões de certa imprensa periódica, que associava a demissão inesperada de Wenceslau dos cargos de Cônsul e de oficial da Marinha a uma opção de carácter exclusivamente político: Não houve nessa atitude [...1 o menor propósito de significar incompatibilidades com a República, como poderá julgar. Quem não conhecer o superior espírito que é Wenceslau de Moraes. Não, nunca ele pensaria em agravar desse modo os homens do seu país. Aquele gesto de renúncia é a consequência dum estado de alma muito particular, que eu via lentamente desenvolver-se, em delicadas e dolorosas florações, nas cartas que ele me escrevia. É a realização de um sonho, velho de muitos anos [...]. Esta amizade extinguiu-se por volta de 1914: segundo Sebastião Peres Rodrigues, a rotura prendeu-se com uma atitude menos positiva de Wenceslau para com os sobrinhos de quem aquele médico era tutor». In Wenceslau de Moraes, Cartas do Extremo Oriente, Fundação Oriente, Lisboa, 1993, ISBN 972-9440-07-7.

Cortesia de FOriente/JDACT