quinta-feira, 29 de maio de 2014

O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval Jacques le Goff. «… conforme as épocas, carolíngio, românico, gótico, frente a um humanismo que se apoia na exploração crescente de uma visão antropomórfica de Deus, houve, na área do maravilhoso, uma certa forma de resistência cultural»

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O Maravilhoso no Ocidente Medieval
«(…) Há que distinguir, como o fizeram os homens da Idade Média, entre o Antigo e o Novo Testamento. No Novo Testamento há, evidentemente, mais milagres que coisas maravilhosas. Quanto ao Antigo Testamento, atendendo ao tipo de leitura e de compreensão que dele tinham os homens da Idade Média, a parte do maravilhoso parece-me relativamente reduzida. Sabemos bem, naturalmente, que há os estudos clássicos de Eruzer, de Saintyves e outros, sobre o folclore no Antigo Testamento. Nele encontramos episódios, por vezes mesmo livros inteiros, que alimentaram abundantemente o maravilhoso do Ocidente cristão. Um lugar à parte deve assinalar-se, em particular, se me é permitido saltar do Antigo para o Novo Testamento, ao Apocalipse. O Antigo Testamento, tal como foi lido, sentido, vivido pelos homens da Idade Média, encerra uma pequena parte de maravilhoso. E a Bíblia é, senão a fonte de tudo, pelo menos ponto de referência para tudo. O que explica porque é que, quando o maravilhoso vier a ressurgir, ele será de algum modo independente: para ele será de facto muito mais difícil do que para outros elementos encontrar aquilo que os homens da Idade Média procuravam sempre, a referência bíblica.
O terceiro e último problema é a função do maravilhoso; com efeito, uma vez que descrevemos o maravilhoso, que procurámos caracterizá-lo, não dissemos ainda grande coisa se nos não esforçarmos por compreender também porque é que ele foi produzido e consumido, para que é que serviu, qual foi a sua função. Uma primeira observação sublinha a evidente função de compensação do maravilhoso, O maravilhoso é um contrapeso à banalidade e à regularidade do quotidiano. Mas é preciso ver como ele se manifesta. No Ocidente medieval os mirabilia tiveram a tendência para organizar-se numa espécie de universo virado ao contrário. Os temas principais são: a abundância alimentar, avidez, a liberdade sexual, o ócio. Diante de algumas grandes palavras de ordem e forças mentais deste mundo, não é um acaso que precisamente no campo do folclore e do maravilhoso uma das raras criações do Ocidente medieval seja o tema da terra da Cocanha, que aparece no século XIII, não tendo existido antes, de facto. Podemos, sem dúvida, encontrar raízes ou certas equivalências mais longínquas, mas o tema da Cocanha como tal é uma criação medieval. O mundo às avessas e, acrescentaria eu, o mundo ao contrário; e é aqui que o Génesis, e principalmente um Génesis em que se irá à procura dos elementos pré-cristãos, mais do que dos elementos propriamente cristãos, exerce o seu fascínio sobre os homens da Idade Média. É a ideia de um paraíso terrestre e de uma idade de ouro que não estão para diante, no futuro, mas para trás, no passado, e se se procura reencontrá-los num millenium utópico não é em vista de um horizonte futuro mas enquanto retorno ao que está para trás.
Mundo às avessas, mundo ao contrário, distinção entre o miraculosus, o magicus, o mirabilis. Parece-me poder dizer-se, sem exagerar, que o maravilhoso foi em última análise uma forma de resistência à ideologia oficial do cristianismo (embora não tenha sido esta por certo a sua única função, mas uma das mais importantes). Sobre um ponto, que considero essencial a este respeito. Com isto, não creio pôr arbitrariamente a tónica em alguns sectores do maravilhoso medieval em detrimento de outros. No universo dos animais, das plantas, dos objectos, dos seres fabulosos, descobre-se quase sempre uma qualquer referência ao homem, como sucede no maravilhoso muçulmano, por exemplo. No Ocidente medieval tenho a impressão de que as coisas se passam exactamente ao contrário. Assiste-se a uma desumanização do universo que desliza para um universo animalista, para um universo de monstros ou de bichos, para um universo mineralógico, para um universo vegetal. Há uma espécie de recusa do humanismo, uma das grandes bandeiras do cristianismo medieval que se funda na ideia do homem feito à imagem de Deus. Frente a um humanismo que se chamou cristão ou, conforme as épocas, carolíngio, românico, gótico, frente a um humanismo que se apoia na exploração crescente de uma visão antropomórfica de Deus, houve, na área do maravilhoso, uma certa forma de resistência cultural. Para concluir, eu insistiria naquilo a que chamaria as fronteiras do maravilhoso. Tal como muitos fenómenos, muitas categorias, o maravilhoso não existe no estado puro. Acolhe-se dentro de fronteiras permeáveis. O amplo alcance do maravilhoso medieval depende exactamente de um seu desenvolvimento interno, pelo qual o maravilhoso se estimula, se alarga e assume proporções ambiciosas e por vezes extravagantes». In Jacques le Goff, Il meraviglioso e il quotidiano nell’occidente medievale, Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval, Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-44-1563-5.

Cortesia de E70/JDACT