quarta-feira, 7 de maio de 2014

A Poética da Tragédia Sofocliana. Marta Várgeas. «No que diz respeito a Sófocles são conhecidas as suas incursões por uma reflexão mais teórica acerca da arte dramática. Segundo a Suda, uma enciclopédia do séc. X, o autor terá chegado a escrever um livro sobre o Coro»

Cortesia de joaochichorro

«(…) A crítica platónica, porém, não visa o modo de funcionamento dos modelos educativos da sociedade, isto é, a ideia de que a educação na pólis devia orientar-se de acordo com o princípio da emulação. Neste aspecto a sua é uma proposta de continuidade, no sentido em que retoma a ancestral tradição de uma didáctica assente no paradigma como forma de induzir comportamentos. Daí que, na sua perspectiva, o discurso filosófico seja melhor do que o poético ou o retórico, não apenas por dizer a verdade, mas também por indicar o caminho certo, mostrando exemplos a serem imitados pelos que os ouvem. Nada poderia, de facto, estar mais longe da tragédia, mesmo a de autores como Ésquilo ou Sófocles. Aquilo que é, segundo Hegel, a verdadeira essência do modo dramático, a representação de conflitos, por si só remetia para a pluralidade de pontos de vista e de respostas às grandes questões debatidas no Teatro, verdadeiro fórum de discussão, ao lado da Assembleia ou mesmo dos Tribunais. Acresce ainda que a ausência da voz autoritária de um narrador, mediando entre as personagens e os espectadores, dificultava o discernimento sobre a suposta lição que o espectáculo trágico pretendesse mostrar. Com efeito, a tragédia grega inaugura, de forma mais ou menos consciente, e com diferentes graus de percepção por parte dos seus destinatários, um outro tipo de pedagogia, a que poderemos chamar dialéctica, ou talvez ainda com maior propriedade, dilemática, dado que mais do que a procura de uma resposta, o que parece interessar aos dramaturgos é levantar problemas, os quais se revelam, na maior parte dos casos, de difícil senão mesmo impossível solução. A natureza da tragédia, ou a forma que ela foi tomando às mãos dos poetas trágicos, não se coadunava, portanto, com o dogmatismo moral dos seus detractores; e, além disso, a própria criação de significado dramático dependia, em grande parte, das emoções suscitadas pelo espectáculo. Daí a rejeição platónica.
Assim não entendeu, como sabemos, Aristóteles, o grande responsável pela viragem crítica que suspendeu o juízo censório sobre a Poesia, fundamentado por considerações de ordem ética e filosófica, e reabilitou as emoções, como factores positivos da experiência estética, não apenas por proporcionarem o prazer e o deleite dos ouvintes, como Górgias muito antes já defendera, mas sobretudo pelo seu papel no processo de conhecimento que essa mesma fruição estética implica. De facto, na sua famosa definição de tragédia grande relevo é dado às emoções, designadamente, ao terror e à compaixão, que o Estagirita investe de um poder cognitivo. A análise da tragédia do séc. V, porém, e particularmente da tragédia sofocliana, permite-nos concluir que o papel das emoções no processo de conhecimento fora já alvo da reflexão dos próprios poetas. Assiste-se, com efeito, principalmente nas últimas décadas do século, a uma viragem da tragédia sobre si própria, em relação directa com a crescente necessidade de se afirmar enquanto discurso com dignidade e valor para a pólis.
No que diz respeito a Sófocles são conhecidas as suas incursões por uma reflexão mais teórica acerca da arte dramática. Segundo a Suda, uma enciclopédia do séc. X, o autor terá chegado a escrever um livro sobre o Coro, infelizmente desconhecido para nós. Também a referência de Aristóteles (Poética) às suas afirmações sobre o desenho das personagens, e as de Plutarco (Moralia), segundo o qual o dramaturgo teria tecido algumas considerações sobre a evolução do seu estilo dramático, constituem um sinal de que à sua actividade como poeta trágico não era alheia a reflexão acerca da própria arte que cultivava». In Marta Várgeas, A Poética da Tragédia Sofocliana, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.

Cortesia da FLUPorto/JDACT