quinta-feira, 8 de maio de 2014

Cândido ou o Optimista. François-Marie Arouet. «Pangloss ensinava a metafísico-teológico-cosmolonigologia. Provava de forma admirável “que não há efeito sem causa”, e que, no melhor dos mundos possíveis, o castelo do senhor barão era o mais belo dos castelos…»

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Como Cândido foi criado e expulso de um formoso castelo
«Existia na Vestefália, no castelo do senhor barão Thunder-ten-tronckh, um jovem dotado pela natureza com os sentimentos mais suaves. A sua fisionomia retratava a sua alma. Possuía o raciocínio justo e o espírito simples; era decerto por essa razão, penso eu, que lhe chamavam Cândido. Os antigos criados da casa suspeitavam que fosse filho da irmã do barão e de um bom e gentil fidalgo da vizinhança, com o qual ela não quis casar por ele não ter podido provar mais do que setenta e um costados de nobreza, tendo-se o resto da sua árvore genealógica perdido pelas injúrias do tempo.
O barão era um dos mais poderosos senhores da Vestefália, porque o seu castelo tinha uma porta e várias janelas. A sua sala tinha mesmo o luxo de ser adornada com uma tapeçaria. Os cães que guardavam as suas capoeiras conseguiam formar uma matilha em caso de necessidade; os seus palafreneiros serviam de picadores; o cura da aldeia era o seu capelão. Toda a gente lhe chamava monsenhor e se ria amavelmente quando ele contava histórias.
A senhora baronesa, que pesava cerca de trezentas e cinquenta libras (aproximadamente cento e cinquenta quilos), era por isso mesmo muito considerada, e fazia as honras da casa com uma dignidade tal que a tornava ainda mais respeitável. Sua filha, Cunegundes, de dezassete anos de idade, era muito rosada, fresca, gorducha e apetitosa. O filho do barão parecia em tudo digno de seu pai. O preceptor Pangloss era o oráculo da casa, e o pequeno Cândido ouvia as lições do mestre com toda a boa fé da sua idade e do seu carácter. Pangloss ensinava a metafísico-teológico-cosmolonigologia. Provava de forma admirável que não há efeito sem causa, e que, no melhor dos mundos possíveis, o castelo do senhor barão era o mais belo dos castelos, bem como a senhora era a melhor das baronesas possíveis.
Está demonstrado, dizia ele, que o que existe não pode ser diferente; porque, tendo tudo sido criado para um fim, tudo é necessariamente para o melhor dos fins. Note-se bem que os narizes foram feitos para segurar os óculos e, portanto, nós temos óculos; as pernas foram certamente instituídas para serem calçadas e, por isso, usamos calçado; as pedras formaram-se para serem cortadas e amontoadas em castelos, e eis aqui por que o senhor barão possui um tão soberbo edifício, visto que o mais importante fidalgo da sua região deve ser o mais bem instalado. Porque os porcos foram criados para serem comidos, nós comemos porco todo o ano. Por consequência, quem afirma que tudo está bem diz apenas uma asneira. É preciso afirmar que tudo vai pelo melhor.
Cândido ouvia tudo isto atentamente e acreditava inocentemente, porque achava a menina Cunegundes extremamente bela, apesar de nunca ter tido o atrevimento de lho dizer. Pensava que depois da felicidade de ter nascido barão Thunder-ten-tronckh, o segundo grau de felicidade era poder ser a menina Cunegundes; o terceiro consistia em vê-la todos os dias, e o quarto estava em ouvir o professor Pangloss, o maior filósofo da região e, por consequência, da terra inteira.
Aconteceu um dia que Cunegundes, passeando perto do castelo, no pequeno bosque a que chamavam parque, viu entre os arbustos Pangloss dando uma lição de física experimental à criada de quarto de sua mãe, moreninha bonita e muito doce. Como a menina Cunegundes tinha uma grande queda para as ciências, observou, sem se mexer, as repetidas experiências de que foi testemunha. Viu perfeitamente a razão suficiente do filósofo, os efeitos e as causas, e voltou para casa transtornada, pensativa, cheia de desejo de também ser sábia, sonhando em se tornar na razão suficiente do jovem Cândido, que poderia muito bem vir a ser a sua. Quando regressava encontrou Cândido e corou. Cândido corou também. Ela murmurou um bom dia com a voz sobressaltada, e Cândido respondeu sem saber o que dizia. No dia seguinte, depois do jantar, ao levantarem-se da mesa, Cândido e Cunegundes encontraram-se abrigados por um biombo. Cunegundes deixou cair o lenço, Cândido apanhou-o; ela pegou-lhe na mão com toda a inocência; ele com a maior inocência, beijou a mão da jovem com uma vivacidade, uma sensibilidade, uma graça bem característica. As suas bocas encontraram-se, os seus olhos inflamaram-se, os seus joelhos tremeram, as suas mãos desatinaram. O senhor barão Thunder-ten-tronckh passou perto do biombo e, ao ver a causa e o efeito, expulsou Cândido com grandes pontapés no traseiro. Cunegundes desmaiou; quando a reanimaram foi esbofeteada pela senhora baronesa; e todos ficaram consternados, no mais belo e mais agradável dos castelos possíveis». In François-Marie Arouet (Voltaire), Candide ou L’Optimisme, Cândido ou o Optimista, Guimarães Editores, Lisboa, 2009, ISBN 978-972-665-578-7.

Cortesia de GuimarãesE./JDACT