terça-feira, 13 de maio de 2014

Cândido ou o Optimista. François-Marie Arouet. « Que é feito de Cunegundes? Ela morreu, respondeu o outro. Cândido, ouvindo isto, desmaiou; o amigo reanimou-o com umas gotas de péssimo vinagre que por acaso achou na estrebaria…»

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Como Cândido encontrou o seu antigo mestre de filosofia, Pangloss, e o mais que se segue
«Cândido, mais tocado de compaixão que de horror, deu ao assustador mendigo os dois florins que tinha recebido do bondoso anabaptista Jacques. O fantasma fixou-o por longo tempo, chorou, e saltou-lhe ao pescoço num abraço. Cândido, assustado, recua. - Ah! - diz o mísero ao outro mísero, já não reconheceis o vosso amigo Pangloss? - Que ouço? Vós, meu caro mestre? Vós, nesse estado horrível? Mas que tremenda desgraça vos aconteceu? Porque não estais ainda no mais formoso dos castelos? Que é feito da menina Cunegundes, a pérola das raparigas, a obra-prima da Natureza? - Estou sem forças, respondeu Pangloss. Imediatamente Cândido levou-o para a estrebaria do anabaptista e deu-lhe um pedaço de pão a comer. Quando o viu refeito tornou a perguntar: - Que é feito de Cunegundes?
Ela morreu, respondeu o outro. Cândido, ouvindo isto, desmaiou; o amigo reanimou-o com umas gotas de péssimo vinagre que por acaso achou na estrebaria. Cândido abriu os olhos e exclamou: - Cunegundes morreu! Ah, onde está esse mundo que é o melhor dos mundos? Mas de que doença morreu ela? Não seria pelo desgosto de me ver expulso do belo castelo do senhor barão com grandes pontapés no traseiro? – Não, respondeu Pangloss, morreu esventrada pelos soldados búlgaros, depois de ter sido violada tanto quanto se pode sê-lo. O senhor barão morreu também, com a cabeça esmagada, por tentar defender a filha. A senhora baronesa foi esquartejada, e o meu pobre pupilo foi tratado com a mesma crueldade que a irmã. Quanto ao castelo, não ficou dele pedra sobre pedra; destruíram as granjas; não deixaram um carneiro, um pato, uma árvore. Mas fomos bem vingados, porque os soldados ábares fizeram o mesmo numa baronia das vizinhanças, que pertencia a um senhor búlgaro.
Depois destas palavras, Cândido desmaiou novamente; mas, voltando a si, e tendo dito tudo o que devia dizer, inquiriu da causa e do efeito e também da razão suficiente que tinha conduzido Pangloss a tão lamentável estado.
Ai! - exclamou o outro. - Foi o amor: o amor, o consolador do género humano, o conservador do Universo, a alma de todos os seres sensíveis, o terno amor. Ai! - disse Cândido. Já conheci esse amor, esse rei dos corações, essa alma da nossa alma! Só me valeu um beijo e vinte pontapés no traseiro. Mas porque motivo uma causa tão bela produziu em vós um efeito tão abominável? Pangloss respondeu nestes termos: - Ó meu caro Cândido, conhecestes Paquette, a linda criadinha da nossa augusta baronesa; nos braços dela gozei as delícias do Paraíso, que redundaram nestes tormentos do Inferno que ao presente me devoram e de que ela estava infectada (sífilis), e dessa causa deve ter morrido. Paquette recebeu esse presente de um frade franciscano muito sapiente que a trazia de boa fonte, porque a apanhara de uma velha condessa que a recebera de um capitão de cavalaria, o qual a devia a uma marquesa que a tinha de um pajem, e este recebera-a de um jesuíta que , sendo noviço, a recolhera em linha recta de um dos companheiros de Cristóvão Colombo. Por mim, não a passarei a ninguém, porque morro». In François-Marie Arouet (Voltaire), Candide ou L’Optimisme, Cândido ou o Optimista, Guimarães Editores, Lisboa, 2009, ISBN 978-972-665-578-7.

Cortesia de GuimarãesE./JDACT