sábado, 31 de maio de 2014

África no 31. Literatura e Poder na África Lusófona. José Venâncio. «Samba Diallo encarna, na verdade, o drama de todos quantos em Paris lançaram o grito da ‘Negritude’, a urgência do ‘retorno às origens’ como forma de se tornarem coerentes com a sua própria origem biológica e cultural»

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Colonialismo e Criação Literária em África
«Então quando eu fui para a escola, para a escola colonial, esta harmonia quebrou-se. O idioma da minha educação deixou de ser o idioma da minha cultura».

«Estas palavras, devidas a um dos maiores escritores africanos, definem o drama por que passaram muitos dos intelectuais africanos dos nossos dias. É provável que Ngugi exagere. O texto em epígrafe pertence a um livro que Ngugi publicou em 1986, Decolonising the Mind – The Politics of Language in African Literature, onde ele explica as razões por que deixou de escrever em inglês, retomando à sua língua materna, o gikuyu. Há uma grande dose de paixão a atravessar este livro. Terá a ver com todos os problemas políticos por que o autor passou na sua terra natal, no Quénia, levando-o à prisão e, por fim, ao exílio. Mesmo admitindo o exagero que poderá estar implícito na frase em epígrafe, algo nos surge como incontestável: é impossível conceber a formação do que geralmente designamos de literatura africana (i. e., literatura africana em línguas europeias) desligada do fenómeno do colonialismo. A sobrevivência deste dependeu da formação de quadros que serviram de intermediários entre os colonizadores, em situação de minoria, e as populações africanas, integradas em sociedades tradicionais, periféricas, em situação de maioria.
A formação de quadros implicava ensino, e ensino formal. Isto é: administravas e a uns tantos africanos, geralmente elementos dos estratos sociais superiores das sociedades tradicionais, um ensino que, sendo, em muitos casos, pretensamente a cópia do modelo metropolitano, acabava sempre por perder em qualidade. Ou porque faltavam professores devidamente qualificados ou porque havia, à partida, uma preocupação explícita das autoridades coloniais em torná-lo profissionalizante, a degeneração tornava-se inevitável. Alguns, muito poucos, dos absolventes do grau secundário lograram deslocar-se à metrópole e frequentar um curso universitário em circunstâncias iguais às dos seus colegas europeus.
Estes dois grupos de africanos letrados, motivados pela ascensão nas sociedades colonial e metropolitana, esforçaram-se, num primeiro momento, por identificar-se com o invasor, com o colonialista. Alienaram-se culturalmente, constituindo então o que geralmente se designa de élites coloniais. Contudo, olhados com desconfiança pelos africanos das sociedades tradicionais e sem serem aceites na sua plenitude de homens livres e pensantes pelas sociedades colonial e metropolitana, apercebem-se, num segundo momento, da inautenticidade cultural e humana em que tinham caído. Esta descoberta é o início de um processo de consciencialização que passa pela reivindicação da autenticidade cultural do seu status com os meios de expressão que o colonizador lhes legara: o idioma e a faculdade de se expressarem literariamente nele. Dando azo a essa faculdade, eles não só dão mostras de que intelectualmente eram capazes de orientar o seu próprio destino, o que até aí havia sido posto em dúvida, como também poderiam porventura com a sua retórica sensibilizar franjas intelectuais da metrópole para a sua causa.
Esta explicação sucinta da génese das literaturas africanas em línguas europeias aplica-se em primeira mão ao nascimento das literaturas francófonas. Os intelectuais que estiveram por detrás delas viram-se a braços com uma política assimilacionista que os fazia franceses de segunda classe. E são precisamente aqueles que viviam em França que encetaram os primeiros passos para a sua afirmação como homens negros e, como tal, pensantes. Eram eles que se viam confrontados a par e passo com a sua situação biológica de homens negros numa sociedade branca, com a fragilidade ou falsidade de um discurso oficial no dia-a-dia. Fundam assim em Paris, em redor da revista Légitime Défense e da que lhe sucede, L’Etudian Noir, o movimento estético-literário que veio a ser conhecido por Negritude. O romance do escritor senegalês Cheikh H. Kane, L’Aventure Ambiguë, cuja 1.ª edição data de 1961, talvez seja de todos os textos representativos desta fase da literatura francófona aquele que melhor exemplifica o dilema dos intelectuais africanos que, no prosseguimento dos seus estudos, se vêm obrigados a absorver muitos dos valores ocidentais. Samba Diallo, a personagem principal do romance, é um jovem senegalês, de origem fula (peul), que se desloca a Paris para aí dar continuidade aos seus estudos. O confronto com a cultura ocidental, com a cultura europeia, despoleta nele uma profunda crise de consciência que não será de todo alheia à sua prematura morte, já na sua terra natal. Samba Diallo encarna, na verdade, o drama de todos quantos em Paris lançaram o grito da Negritude, a urgência do retorno às origens como forma de se tornarem coerentes com a sua própria origem biológica e cultural.
Além disso, o carácter autobiográfico do romance é por de mais evidente. Como Samba Diallo, também Cheikh Hamidou Kane nasceu no seio de uma família tradicional no interior do Senegal, foi iniciado no estudo do Corão durante a sua infância e mais tarde concluiu em Paris (Sorbonne) o curso de Direito e Filosofia. Depois disso, tal como Samba Diallo, regressa ao seu país natal. A necessidade de afirmar a sua Negritude não se faz sentir com tanta acuidade entre os intelectuais anglófonos. A Inglaterra privilegiara, na verdade, uma política de integração indirecta, o correlato da administração indirecta, das populações africanas na economia mundial. Serviu-se geralmente para tal fim do seu potencial económico, fazendo chegar até aos pontos mais recônditos a lei do capitalismo. Tal não significa, todavia, que tenha descurado os meios que haviam sido apanágio dos colonialismos francês e português, nomeadamente a evangelização cristã. Os efeitos desta aparecem registados num dos primeiros e mais significativos textos da literatura anglófona. Trata-se do romance Things Fall Apart, de Chinua Achebe, um dos mais conhecidos e conceituados escritores de língua inglesa dos nossos dias. Achebe foi um dos pioneiros da literatura anglófona. O seu romance foi editado pela primeira vez em 1958. Ele tem por tema o desabar das estruturas e dos valores tradicionais entre os Ibos, povo que habita o sueste da Nigéria e do qual o autor é originário». In José Carlos Venâncio, Literatura e Poder na África Lusófona, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Diálogo-Série Convergência, Cultura, Etnologia, Linguística, África Lusófona, INCM, Lisboa, 1992, ISSN 0871-4444.

Cortesia de INCM/JDACT