terça-feira, 23 de junho de 2015

A Filha do Barão. Célia C. Loureiro. «Mariana torcia desde já o nariz a esse mesmo cheiro; ao do couro dos arreios e ao odor intenso dos cavalos em esforço. O pai sabia que detestava sentir-se enjaulada, mas, sabendo-a apenas com catorze anos, quis que desse algum valor à aventura»

jdact

1805 - 1806
«(…) Sentiria também saudade de ter à vista os vendedores de mel, as aguadeiras, os homens que percorriam a Praça do Comércio com fusos e rocas, os sapateiros nas esquinas, os ferreiros a equipar cavalos para viagens mais longas, os vendedores de tripas. Havia ainda a emoção dos sobressaltos à porra da Casa da Gazeta, no Terreiro, as bostas das bestas espalhadas pelo chão, quase como armadilhas a que deveriam esquivar-se quando caminhavam com os seus elegantes sapatinhos rasos, e a necessidade de se acautelar nas esquinas, pois nem todos os cocheiros eram prudentes ao dobrar um edifício. Geralmente, dona Sofia e Nuna, a criada sexagenária da casa, não a deixavam aproximar-se daquele género de gente. Mariana, impressionada com os seus odores e pés descalços, não tinha interesse, fosse como fosse, em aproximar-se. Falavam demasiado alto, por vezes com sotaques estranhos que se afastavam daquilo que era o círculo culto da cidade e, numa única frase, tropeçavam incontáveis vezes no português correcto que a régua de madeira do professor Manuel Jardim a ajudara a interiorizar. Não se deixava tentar pelos caramelos e desviava o olhar dos rosários de madeira tosca que tentavam impingir-lhe quando atravessava as galerias da Praça em direcção ao edifício onde o pai se debruçava diariamente sobre os livros de contas. Só se detinha nos meses logo após o Verão, em que as castanhas a assar no chão enchiam os ares da capital do Império com uma fragrância irresistível.
Dona Sofia aperrou melhor o xaile de veludo verde-seco, preso com alfinetes sobre a gola rendada do vestido que trajava para a viagem. O facto de ainda não chuviscar, nessa madrugada de meados de Novembro, não significava que, a qualquer momento, a lama e os ventos não fossem desestabilizar a berlinda no longo caminho que tinham pela frente. Dona Sofia despedira-se do marido com um beijo terno no rosto, suficientemente discreta para que as três criadas e a mestra que as acompanhariam não se sentissem tentadas a dirigir o olhar aos seus senhores. Continuaram a carregar baús de porcelana da dinastia Qianlong, do século ultrapassado, embalada em jornais, bem como linhos, lãs e cobertores, a fim de enfrentarem o Inverno no Douro. As suas salvas de prata, os seus aquários de porcelana, potes, chaleiras, bacias e candelabros apinhavam-se em monos maciços que seguiriam em chocalho constante ao longo de toda a viagem. Sem mencionar os baús com uma enorme quantidade de vestidos da baronesa e da menina, que tinham sido aferrados com correias de couro à rectaguarda da berlinda, assim como ao topo da carruagem dos serventes.
Mariana torcia desde já o nariz a esse mesmo cheiro; ao do couro dos arreios e ao odor intenso dos cavalos em esforço. O pai sabia que detestava sentir-se enjaulada, mas, sabendo-a apenas com catorze anos, quis que desse algum valor à aventura. Sem a aprovação de dona Sofia, que não gostava de ser ignorada, instigou a filha a descer novamente da berlinda. Mariana fê-lo de imediato, animada pela perspectiva de que, talvez, o pai tivesse mudado de ideias. O pai, barão João, apoiou-a sob o braço, ajeitou-lhe melhor o capuz preto que a protegia e encaminhou-a para a esquina, a cinquenta passos de distância da berlinda e da carruagem que eram carregadas. O dia mal despontara e, por conseguinte, estava suficientemente escuro em Lisboa para que um pai e uma filha pudessem trocar algum carinho com discrição. O barão acariciou-lhe o rosto com a mão, onde a tinta da pena deixara manchas difíceis de disfarçar, e sorriu-lhe já com saudade. Levou o lenço à boca ao ser acometido por um ataque de tosse, para evitar a transmissão da doença, e Mariana entristeceu ante aquele gesto que pretendia protegê-la. O seu pai era um nobre tão digno, envolto numa capa de lã escura, que ela não resistiu ao impulso de o cingir pela cintura. Era um homem na flor da idade e de constituição forte, que por um instante a apertou sem dificuldade contra o peito. Depois, evocando uma vez mais a doença, afastou-a com firmeza.
Fitou os seus olhos redondos, escuros como a noite no campo, e a inocência que as longas pestanas lhes emprestavam. O vulto de velas e embarcações ao longe no Tejo pareceu distraí-lo dessa promessa de beleza e feminilidade, mas Mariana soube que a fitava porque lhe era difícil prender o olhar no seu durante mais tempo. A despedida doía a ambos. Procurou-lhe a mão e apertou-lha, descobrindo-lha trémula. Não vos preocupeis, paizinho. Eu cuido da mãe. Sabeis que a vossa mãe é uma criatura difícil, filha. Tende paciência com ela. Afagou-lhe os ombros, com o olhar posto no assador de castanhas». In Célia Correia Loureiro, A Filha do Barão, 1809, Marcador Editora, 2013/2014, ISBN 978-989-754-039-4.

Cortesia de Marcador/JDACT