terça-feira, 16 de junho de 2015

O Ano da Morte de Ricardo Reis. José Saramago. «Não diz mais este jornal, outro diz doutra maneira o mesmo, Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da Mensagem, poema de exaltação nacionalista, dos mais belos que se têm escrito, foi ontem a enterrar…»

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«Trabalhar com nobreza, esperar com sinceridade, enternecer-se com o homem, esta é a verdadeira filosofia». In Fernando Pessoa

«(…) Depois duma noite de arrebatada invernia, de temporal desfeito, palavras estas que já nasceram emparelhadas, as primeiras não tanto, e umas e outras tão pertinentes à circunstância que forram o trabalho de pensar em novas criações, bem poderia a manhã ter despontado resplandecente de sol, com muito azul no céu e joviais revoadas de pombos. Não estiveram para aí virados os meteoros, as gaivotas continuam a sobrevoar a cidade, o rio não é de fiar, os pombos mal se atrevem. Chove, suportavelmente para quem desceu à rua de gabardina e guarda-chuva, e o vento, em comparação com os excessos da madrugada, é uma carícia na face. Ricardo Reis saiu cedo do hotel, foi ao Banco Comercial cambiar algum do seu dinheiro inglês pelos escudos da pátria, pagaram-lhe por cada libra cento e dez mil réis, pena não serem elas de ouro que se trocariam quase em dobro, ainda assim não tem grandes razões de queixa este torna-viagem que sai do banco com cinco contos no bolso, é uma fortuna em Portugal. Da Rua do Comércio, onde está, ao Terreiro do Paço distam poucos metros, apeteceria escrever, É um passo, se não fosse a ambiguidade da homofonia, mas Ricardo Reis não se aventurará à travessia da praça, fica a olhar de longe, sob o resguardo das arcadas, o rio pardo e encrespado, a maré está cheia, quando as ondas se levantam ao largo parece que vêm alagar o terreiro, submergi-lo, mas é ilusão de óptica, desfazem-se contra a muralha, quebra-se-lhes a força nos degraus inclinados do cais. Lembra-se de ali se ter sentado em outros tempos, tão distantes que pode duvidar se os viveu ele mesmo, Ou alguém por mim, talvez com igual rosto e nome, mas outro. Sente frios os pés, húmidos, sente também uma sombra de infelicidade passar-lhe sobre o corpo, não sobre a alma, repito, não sobre a alma, esta impressão é exterior, seria capaz de tocar-lhe com as mãos se não estivessem ambas agarrando o cabo do guarda-chuva, escusadamente aberto. Assim se alheia do mundo um homem, assim se oferece ao desfrute de quem passa e diz, Ó senhor, olhe que aí debaixo não lhe chove, mas este riso é franco, sem maldade, e Ricardo Reis sorri de se ter distraído, sem saber porquê murmura os dois versos de João de Deus, célebres na infância das escolas, Debaixo daquela arcada passava-se a noite bem. Veio por estar tão perto e para verificar, de caminho, se a antiga memória da praça, nítida como uma gravura a buril, ou reconstruída pela imaginação para assim o parecer hoje, tinha correspondência próxima na realidade material de um quadrilátero rodeado de edifícios por três lados, com uma estátua equestre e real ao meio, o arco do triunfo, que donde está não alcança a ver, e afinal tudo é difuso, brumosa a arquitectura, as linhas apagadas, será do tempo que faz, será do tempo que é, será dos seus olhos já gastos, só os olhos da lembrança podem ser agudos como os do gavião. Aproximam-se as onze horas, há grande movimento sob as arcadas, mas dizer movimento não quer dizer rapidez, esta dignidade tem pouca pressa, os homens, todos de chapéu mole, pingando guarda-chuvas, raríssimas as mulheres, e vão entrando nas repartições, é a hora em que começam a trabalhar os funcionários públicos. Afasta-se Ricardo Reis em direcção à Rua do Crucifixo, atura a insistência de um cauteleiro que lhe quer vender um décimo para a próxima extracção da lotaria, É o mil trezentos e quarenta e nove, amanhã é que anda à roda, não foi este o número nem a roda anda amanhã, mas assim soa o canto do áugure, profeta matriculado com chapa no boné, Compre, senhor, olhe que se não compra pode-se arrepender, olhe que é palpite, e há uma fatal ameaça na imposição. Entra na Rua Garrett, sobe ao Chiado, estão quatro moços de fretes encostados ao plinto da estátua, nem ligam à pouca chuva, é a ilha dos galegos, e adiante deixou de chover mesmo, chovia, já não chove, há uma claridade branca por trás de Luís de Camões, um nimbo, e veja-se o que as palavras são, esta tanto quer dizer chuva, como nuvem, como círculo luminoso, e não sendo o vate Deus ou santo, tendo a chuva parado, foram só as nuvens que se adelgaçaram ao passar, não imaginemos milagres de Ourique ou de Fátima, nem sequer esse tão simples de mostrar-se azul o céu.
Ricardo Reis vai aos jornais, ontem tomou nota das direcções, antes de se deitar, afinal não foi dito que dormiu mal, estranhou a cama ou estranhou a terra, quando se espera o sono no silêncio de um quarto ainda alheio, ouvindo chover na rua, tomam as coisas a sua verdadeira dimensão, são todas grandes, graves, pesadas, enganadora é sim a luz do dia, faz da vida uma sombra apenas recortada, só a noite é lúcida, porém o sono a vence, talvez para nosso sossego e descanso, paz à alma dos vivos. Vai Ricardo Reis aos jornais, vai aonde sempre terá de ir quem das coisas do mundo passado quiser saber, aqui no Bairro Alto onde o mundo passou, aqui onde deixou rasto do seu pé, pegadas, ramos partidos, folhas pisadas, letras, notícias, é o que do mundo resta, o outro resto é a parte de invenção necessária para que do dito mundo possa também ficar um rosto, um olhar, um sorriso, uma agonia, Causou dolorosa impressão nos círculos intelectuais a morte inesperada de Fernando Pessoa, o poeta do Orfeu, espírito admirável que cultivava não só a poesia em moldes originais mas também a crítica inteligente, morreu anteontem em silêncio, como sempre viveu, mas como as letras em Portugal não sustentam ninguém, Fernando Pessoa empregou-se num escritório comercial, e, linhas adiante, junto do jazigo deixaram os seus amigos flores de saudade. Não diz mais este jornal, outro diz doutra maneira o mesmo, Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da Mensagem, poema de exaltação nacionalista, dos mais belos que se têm escrito, foi ontem a enterrar, surpreendeu-o a morte num leito cristão do Hospital de S. Luís, no sábado à noite, na poesia não era só ele, Fernando Pessoa, ele era também Álvaro de Campos, e Alberto Caeiro, e Ricardo Reis, pronto, já, cá, faltava o erro, a desatenção, o escrever por ouvir dizer, quando muito bem sabemos, nós, que Ricardo Reis é sim este homem que está lendo o jornal com os seus próprios olhos abertos e vivos, médico, de quarenta e oito anos de idade, mais um que a idade de Fernando Pessoa quando lhe fecharam os olhos, esses sim, mortos, não deviam ser necessárias outras provas ou certificados de que não se trata da mesma pessoa, e se ainda aí houver quem duvide, esse vá ao Hotel Bragança e fale com o senhor Salvador, que é o gerente, pergunte se não está lá hospedado um senhor chamado Ricardo Reis, médico, que veio do Brasil, e ele dirá que sim». In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9

Cortesia de Caminho/JDACT