sexta-feira, 5 de junho de 2015

Antão Gonçalves. O mercador-navegador como agente da Expansão. «Que visava a proposta de Antão Gonçalves? Não é necessário imaginá-lo, porque o cronista transcreve-lhe o discurso e este declara-o directamente: o que formoso acontecimento seria, nós que viemos a esta terra para levar carga de tão fraca mercadoria…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Entre os vários navegadores que serviram no tempo do infante Henrique salientou-se, sem dúvida, Antão Gonçalves; pelo menos o cronista Azurara presta-lhe grande atenção, citando-o com muita frequência, para o acompanhar de perto nas suas aventuras pela costa de África. Por isso o escolhemos para figurar neste livro, tomando-o como modelo do navegador típico do seu tempo, embora, e porventura, Antão Gonçalves tivesse sido dos mais insistentes nas suas tentativas exploratórias e comerciais. Era ainda muito jovem homem assaz de nova idade, diz Azurara, mas já desempenhava o cargo de guarda-roupa do Infante, quando este, em 1441, estando o país em sossego (esta alusão tem em vista a primeira grande crise na regência do Reino, evidentemente), lhe entregou a capitania de um navio pequeno com fins meramente comerciais: com efeito, Gonçalves deveria ir carregar peles e óleo de lobos-marinhos, a lugares já bem conhecidos da costa africana; explica o cronista que, para lhe não dar uma incumbência mais honrosa, o príncipe teve em atenção a sua pouca idade. Antão Gonçalves é que se deve ter sentido por isso ferido no seu orgulho; assim, não é de estranhar que, depois de ter carregado a sua embarcação com a mercadoria que lhe fora encomendada, chamasse os seus vinte e um companheiros (as tripulações das caravelas deviam oscilar então entre vinte e trinta homens) e, ao que parece, com o apoio do seu amigo Afonso Guterres, propôs-lhes que levassem a acção mais longe do que lhes fora expressamente indicado; e isto por ser vergonhoso (considerava ele) regressar com tão pequeno serviço.
Que visava a proposta de Antão Gonçalves? Não é necessário imaginá-lo, porque o cronista transcreve-lhe o discurso e este declara-o directamente: o que formoso acontecimento seria, nós que viemos a esta terra para levar carga de tão fraca mercadoria, acertarmos agora em nossa dita de levar os primeiros cativos até a presença do nosso príncipe! O plano era o de um assalto em terra, pela calada da noite, de uns dez homens entre os mais dispostos para isso, com o intuito de apanharem algum pequeno grupo desprevenido e aprisionar pelo menos um azenegue; proposta que foi aceite sem dificuldade pelos seus companheiros. A acção veio a ter lugar na noite imediata, os dez aventureiros saíram em terra e internaram-se até umas três léguas da costa, isto é, até encontrarem trilhos de homens, que tinham deixado um rasto em sentido oposto ao daquele em que eles seguiam. Porque estavam cansados e sequiosos, Gonçalves propôs o regresso pela linha marcada pelos azenegues, com a esperança de encontrar algum grupo isolado sobre o qual facilmente fizessem presas; o que foi aceite. No caminho toparam, na verdade, um mouro que seguia só em um camelo e foi capturado, apesar de se ter defendido com as suas azagaias; rendeu-se.
Alguns dos navegadores que se distinguiram nesta primeira fase dos descobrimentos foram armados cavaleiros, numa clara demonstração da sua origem plebeia. Nuno Tristão, já cavaleiro, como conta Azurara, armou Antão Gonçalves, gesto que foi o primeiro que teve lugar em aquelas partes. Das viagens de Antão Gonçalves, típico navegador-comerciante, ao Rio do Ouro, resultaram duas consequências importantes para a evolução do processo de expansão: o comércio de escravos e o aparecimento do primeiro ouro. Quando Guterres o feriu com um dardo; adiante viram sobre um outeiro o grupo a que o mouro aprisionado pertencia e perseguiram-no; mas acabaram por considerar mais prudente não o acometer, por estar a cair o dia, por se encontrarem cansados e o número dos mouros a atacar ser elevado; apanharam, no entanto, uma moura negra, que era serva de algum daqueles que se encontravam no outeiro, a captura foi feita por decisão de Antão Gonçalves, mas contra a vontade de outros, que teriam preferido tê-la deixado livre. Esta acção, que parece de pequena monta, foi então considerada de grande valor; e como entretanto chegara àquele lugar Nuno Tristão, todos os companheiros de Antão Gonçalves quiseram que ele fosse armado cavaleiro, o que, na verdade, foi feito, como se alude ao tratarmos da biografia de Nuno Tristão.
Também no trecho dedicado a Tristão é dito como o Infante recebeu com satisfação tanto Antão Gonçalves como o navegador que o armara cavaleiro, não só pelo lucro que tirava da venda dos cativos, mas pela santa intenção que o príncipe tinha de salvar almas perdidas. Antão Gonçalves estava, porém, destinado a ser pioneiro em acções fundamentais que os Portugueses fizeram na costa ocidental africana; além de ter sido ele a fazer os primeiros cativos, como acaba de ser dito, logo no ano imediato ao dessa viagem foi fazer o primeiro resgate como se lê no título do capítulo XVI da Crónica.
Que resgate? A simples troca do mouro honrado, que viera na leva dos dois navios, por uns dez mouros negros, que por ele seriam dados em troca. Antão Gonçalves foi quem propôs o negócio a Henrique, baseando-se em três ordens de razões: 1.ª, era melhor tentar salvar dez almas do que três (ao nobre mouro juntavam-se, na troca, dois moços), visto que, embora estes fossem trocados por negros, mesmo assim estes tinham alma com os outros; 2.ª, que através desses negros obtidos na permuta poderia eventualmente saber da terra muito mais longe; 3.ª, que ele, Antão Gonçalves, teria maneira, quando no trato falasse, de se trabalhar de saber as mais novas que pudesse. Assentiu o príncipe, fazendo notar ao peticionário que, tendo por bom serviço as informações que ele se propunha recolher, não somente daquela terra desejava de haver sabedoria, mas ainda das Índias, e da terra do Preste João, se ser pudesse. E de esclarecer que o Preste João, mais tarde reconhecido como imperador da Etiópia ou Abissínia, (como se refere ao tratar do padre Francisco Álvares e de Pêro da Covilhã), era ainda, na primeira metade do século XV uma personagem mítica. A partir de uma carta apócrifa, que lhe fora atribuída e divagara pela Europa nos últimos séculos da Idade Média, admitia-se que se tratava de um rei muito poderoso e riquíssimo, cujos territórios centrais se situavam para além do Nilo portanto, em áreas ainda consideradas por esse tempo como parte da Ásia, mas com domínio que cobriam quase toda a África; alguma cartografia dos séculos XIV a XV situaria a Etiópia em vários lugares africanos; e em especial uma Etiópia arenosa na costa ocidental da Africa e a Etiópia Meridional na África do Sul! Deste e de outros passos da Crónica de Azurara em que a relação com os habitantes da costa de África foi preocupação dominante dos primeiros navegadores. Comunicação nem sempre facilitada pela diferença já estabelecida entre os dominadores maometanos e a restante população indígena». In Luís de Albuquerque, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses, Séculos XV e XVI, Antão Gonçalves, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.

Cortesia de Caminho/JDACT