domingo, 28 de junho de 2015

Viagem pelo Universo Feminino. Cristina Costa Vieira. «Para evitar conflitos com o registo histórico, aquele tende a focar as áreas obscuras da historiografia. Por outras palavras, restringe-se à exploração temática, de uma forma verosímil, dos espaços em branco, das lacunas deixadas no registo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Não podemos esquecer..., que a história das mulheres, a verdadeira história das mulheres, conta apenas vinte anos. Todo o resto foi filtrado pelos homens, pelos que escreviam ou mandavam escrever». In A Deusa Sentada

O romance histórico como ponto de fuga
«(…) Devemos ter logo em consideração a sua relação privilegiada com o realismo, não no sentido estrito de escola ou período literário, mas numa concepção trans-histórica do termo: the representation of experience in a manner which approximates closely to description of similar experience in non-literary texts of the same culture. Nesse sentido, podemos dizer que, embora o romance histórico tenha nascido sob o signo do romantismo, Scott não é um autor romântico, mas sim realista. Isto porque se esforçou por criar uma ilusão de realidade com base em factos historiográficos a que acrescentava dados fictícios. Para assegurar tal ilusão, Scott e seus imitadores recorreram a estruturas como a narração heterodiegética omnisciente, o estilo indirecto livre, descrições minuciosas e um grande investimento nos diálogos, onde diferentes pontos de vista são colocados frente a frente. São recursos que dinamizam a acção e constroem uma maior verosimilhança e objectividade. Igualmente determinadoras do realismo característico da forma clássica do romance histórico são as estratégias seguidas por estes romancistas para camuflar a juntura que separa o mundo fictício do mundo real e que constituíam, no fundo, constrangimentos a que se sujeitavam. Brian demonstra que o romance histórico clássico respeita factos relativos a pessoas e eventos históricos. Para evitar conflitos com o registo histórico, aquele tende a focar as áreas obscuras da historiografia. Por outras palavras, restringe-se à exploração temática, de uma forma verosímil, dos espaços em branco, das lacunas deixadas no registo histórico oficial. Manzoni concebia o romance histórico como uma humanização do que a História deixara em silêncio, os sentimentos, as vontades e as palavras dos actores da História. Decorrente da preocupação em ser verosímil, avulta o cuidado em evitar incongruências históricas, respeitando os costumes e mentalidades próprios de cada época, ou seja, evitando a todo o custo anacronismos, regras que os romancistas históricos pós-modernos frequentemente subvertem. Segundo Lukacs, apenas um anacronismo se impunha como nécessaire: a expressão clara dos sentimentos e pensamentos das personagens, sem que isso implique modernização da sua psicologia, para maior entendimento das mesmas, e a modernização da linguagem, para inteligibilidade do texto. O retrato psicológico das personagens não era, aliás, uma tarefa muito árdua, pois na convicção ainda iluminista de Scott, as pessoas ao longo das épocas históricas modificam o seu aspecto exterior, enquanto as suas emoções básicas permanecem. Quanto ao resto, o romancista deveria permanecer fiel à historiografia, criando assim um efeito de autenticidade histórica muito mais profundo do que mera descrição verosímil de ambientes, designada por cor local, só por si insuficiente para ressuscitar uma época histórica.
Adoptando o pensamento de Vanoosthuyse, se um romance histórico procura ser mais substantivo ou mais adjectivo, isto é, ou mais romance ou mais histórico, então o século XIX, na sua globalidade, preferiu manietar os caprichos de Calíope em honra de Clio. Na tipologia dos romances históricos de Joseph Turner com base no tratamento do passado histórico, os romances históricos oitocentistas são ficções históricas documentadas, na medida em que a adaptação de material histórico pretende ser fiel, para o que o romancista concorre documentando-se sobre a época que vai retratar. Precisamente para poder fruir de uma maior liberdade criativa, sem cair no perigo da infidelidade histórica, conjugado com o propósito máximo de operar um acordar poético de uma época transata, Scott escolhia para herói das suas intrigas não uma personalidade histórica, que aparecia apenas em momentos-chave da narrativa, mas um herói não referencial ou semi-histórico, geralmente prosaico, representante de correntes sociais e de forças históricas, e não um herói épico e maniqueisticamente concebido. O usufruto de maior liberdade criadora sem consequências para a verdade histórica, terá pesado na opção scottiana pelo medievalismo». In Cristina Costa Vieira, Viagem pelo Universo Feminino de ‘A Esmeralda Partida’ de Fernando Campos: o romance histórico como ponto de fuga, Bolseira do programa Praxis XXI, Dissertação para a obtenção do grau de Mestre em Estudos Portugueses e Brasileiros, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2000.

Cortesia da FLP, UPorto/JDACT