domingo, 14 de junho de 2015

Os Teatros de Lisboa. Júlio C. Machado. Ilustrações de Bordalo Pinheiro. «Ventura, Victorino, Tasso, Vianna, Lisboa… Este ultimo era mais do que alto, era gigante. Imaginem a sr.ª Tallassi, esbelta na scena, merecedora de um namorado que arrancasse arvores…»

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NOTA: De acordo com o original

«(…) Tive pena sincera de ver o espectáculo d'aquella angustia. Fora em Portugal a mais considerada, e mais respeitada artista, e custava-lhe a entrar para a multidão depois de haver sido in illo tempore o assombro d'ella. É comprehensivel esta magua; mais que comprehensivel, respeitável: mas respeitável nem sempre quer dizer attendivel, e, apesar de estarmos no paiz das reconsiderações, não intendeu nenhum commissario régio reconsiderar sobre o caso, fundando-se em que também o tempo não queria reconsiderar remoçando-a outra vez. O peor é que, apezar dos defeitos da sr.ª Talassi, as actrizes que apparecem agora nem d'esses defeitos são capazes! Pelo género, pelas predilecções, pelas qualidades, e até pelos deffeitos, foi a actriz do seu tempo; foi-o também por outra circumstancia ainda, pela estatura. Os artistas eram quasi todos grandes n’esse tempo. Theodorico velho. Theodorico sobrinho, que é esse que ainda hoje ahi temos.
Ventura, Victorino, Tasso, Vianna, Lisboa… Este ultimo era mais do que alto, era gigante. Imaginem a sr.ª Tallassi, esbelta na scena, merecedora de um namorado que arrancasse arvores e usasse, como Pichrocolo, de um homem em ar de bengala, imaginem-a em scenas amorosas com um heroe miúdo, que em possança e dotes phisicos lhe fosse notavelmente inferior! Já tenho ouvido contar aos que teem experiência d'essas coisas por sua vida aventurosa e prendas bem fadadas, que na vida real são os contrastes o maior encanto: adoram os velhos a juventude, homem forte quer noiva franzininha, e as viragos teem o mais doce fraco por homens delicados e airosos… Mas no theatro, não. No theatro é tudo armado á óptica.
Imaginem-a soberba e magnifica, ancha, espectaculosa, mulher de apparato e de enormes feitos, ser raptada n'um incêndio e levada em braços por algum dos actores de hoje, gente pequena, de maior fôlego que presença, por exemplo Santos que não é o que se chama miudinho, que não se parece com o delicadinho d'Évora, mas que tem sem duvida maior cabelleira que estatura. O que não quer dizer que não tenha maior chapéu ainda..., do que cabelleira! Ah! Mas... Mas, se fallâmos em chapéu, também não posso parar aqui! Seria injustiça. Quando o traje dos heroes é característico, adquire vulto como o personagem. A niza de briche de Frederico da Prússia... A redingote grise de Napoleão... O chapéu de Santos... Vamos á parte histórica. Venham factos: De uma occasião, ha poucos mezes... Vi sobre o balcão da loja do Roxo, ao Rocio, um objecto de proporções incalculáveis, tendo até certo ponto, ou, para que digamos melhor, tendo de certo ponto... para diante, as formas de um chapéu.
Do mesmo modo que Paulo Plantier tem por cima das portas da sua relojoaria um relógio enorme, em symbolo e distinctivo do estabelecimento, cuidei também que fosse destinado a pôr-se á porta, na altura de um lampeão, como annuncio da chapellaria, aquelle chapéu formidoloso. Ia a juntar-se gente, parava sempre alli quem passava, e eu não pude resistir á tentação de entrar, levando commigo para dentro da loja outro amigo—para vermos o chapéu juntos, porque eu sósinho... não podia. Uma vez encostados nós dois, dando-nos mutuo auxilio e incitando-nos reciprocamente a este commettimento de proporções de chaldeu, exclamámos juntos, exactamente como as Marchisio exclamavam tudo, isto é, em duetto, porque isolada a voz de qualquer d'ellas não tinha a força sufficiente para as grandes phrases: Que chapéu!... O povo á porta exclamava também: Que chapéu!... O chefe do movimento n'aquella chapelaria acreditada é um homem loiro, fleugmatico. Olhava-nos sorrindo serenamente, e parecia disfructar in petto a surpresa e o pasmo da turba. Novamente nós repetíamos: Que chapéu !! E a multídão, accrescentada a todo o instante por novos transeuntes, repetia por sua vez: Que chapéu!!!» In Júlio César Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of Toronto.

Cortesia de LEMMoreira/1874/Bordalo Pinheiro/JDACT