quarta-feira, 10 de junho de 2015

A Literatura Novelística na Idade Média Portuguesa. Luciano Rossi. «E pois lhi Lop’ouver [ben ] citolado se i alguen chegar, polo prender, diz que é mui corredor aficado; e de mais, se cansar ou se caer, e i alguen chegar polo filhar, jura que alçará voz a cantar, que non aja quen dulte, mal pecado»

jdact e wikipedia

Literatura de Corte: Cantigas de Santa Maria e Cantigas de Maldizer e D’escarno
«(…) Não dizemos, naturalmente, que as componentes em que os poetas adoptam tais expressões sejam decididamente as mais narrativas do repertório d’escarnho. Na realidade, as cantigas mais interessantes quanto a este último aspecto são, como se disse, aquelas em que as anedotas são narradas directamente e sem preâmbulos. Nota-se aqui a presença de hábeis escritores, como Martin Moxa, Ayras Nunes, Martin Soares, Joan Soares Coelho, Afons’Eanes Coton e Fernan Velho, para não citar senão alguns. Os temas preferidos são os do eterno triângulo erótico, da diversidade e da perversão sexual, do esgotamento senil e da incapacidade. As técnicas preferidas são as que se baseiam na antífrase e na onomástica alusiva. O recurso à antífrase serve, obviamente, para reforçar a zombaria:

Con alguen é’qui Lopo desfiado
a meu cuidar, ca lhi viron trager
un citolon mui grande sobarcado, …

Assim, Martin Soares apresenta a história de um duelo no qual está envolvido o jogral Lopo. Este não leva armas para o duelo mas apenas a sua rabeca; bastar-lhe-á cantar para pôr em debandada os adversários, pobres diabos verdadeiramente infortunados! Todo o conto se baseia numa infracção: às aparências exteriores corresponde uma realidade de que só o poeta tem conhecimento. Fazendo uma escolha ideal, o narrador, autêntico jogral, mima as fases mais importantes da história, preparando o seu público para a risada final:

E pois lhi Lop’ouver [ben ] citolado
se i alguen chegar, polo prender,
diz que é mui corredor aficado;
e de mais, se cansar ou se caer,
e i alguen chegar polo filhar,
jura que alçará voz a cantar,
que non aja quen dulte, mal pecado.

Poderíamos continuar a série das citações, ou analisar o repertório obsceno das cantigas, muitas vezes mais vivo e divertido. Pensamos, todavia, ter já atingido o nosso objectivo, que era o de demonstrar como se não pode excluir de uma história das formas narrativas medievais a sátira jogralesca das cantigas d’escarnho. Claro que estas composições, como de resto as Cantigas de Santa Maria, são literatura requintadamente cultivada no ambiente da corte, não gozando duma efectiva difusão para além do círculo restrito desse ambiente. Ainda que o riso jogralesco pareça dirigido de cima, está ligado a factos contingentes, muitas vezes a verdadeiras anedotas de crónica miúda. Tenta-se a paródia da literatura de corte, mas o público continua a ser o mesmo; os textos não se difundem (como por exemplo os fabliaux ou a matéria de Bretanha) em meios sociais mais vastos; não atingem as camadas mais populares. As cortes ibéricas surgem-nos assim, neste aspecto, extremamente fechadas, sobretudo a portuguesa. É significativa, a tal propósito, a extrema pobreza do património manuscrito da lírica do século XII. Sem a intervenção ocasional, no século XVI, do humanista italiano Angelo Colocci que fez transcrever os dois apógrafos italianos, disporíamos hoje de um único testemunho: o códice da Ajuda. Tradição estéril, exactamente porque relegada para o âmbito da corte. Como observa justamente Giuseppe Tavani, a transmissão da lírica galego-portuguesa fica confinada ao próprio ambiente que a produziu, e que, num primeiro momento, não se apercebe da urgência de multiplicar as colectâneas antológicas destes textos; que mais tarde os despreza como superados pelo desenvolvimento de outras modas literárias. Quer dizer: falta à lírica galego-portuguesa o contributo do interesse filológico por parte de uma cultura e de uma sociedade exteriores a ela que lhe cuidem da conservação, do estudo e da transmissão; mas falta-lhe também, dentro da sociedade que a produziu, o suporte dum activo interesse cultural e estético, coadjuvado por adequados meios económicos. Os dois polos em torno dos quais gira a maior parte da actividade literária no Portugal medieval são, por conseguinte, a corte e o convento. Para descobrir os traços, ainda que indirectos, duma difusão mais ampla dos textos literários é preciso explorar com cautela a intrincada floresta constituída pelo romance de cavalaria». In Luciano Rossi, A Literatura Novelística na Idade Média Portuguesa, Instituto de Cultura Portuguesa, CV Camões, Instituto Camões, volume 38, série Literatura, 1979.

Cortesia de ICamões/JDACT