terça-feira, 9 de junho de 2015

A Literatura Novelística na Idade Média Portuguesa. Luciano Rossi. «Estes três, vendo a hora tardia e o lugar ermo e fechado, assaltaram-no e roubaram-no, deixando-o a pé em camisa, e dizendo ao partir: Vai e vê se o teu S. Julião te dá esta noite uma boa hospedaria, que o nosso bem no-la dará»

jdact e wikipedia

Literatura de Corte: Cantigas de Santa Maria e Cantigas de Maldizer e D’escarno
«(…) Como fora antecipado no título e no refrain, o vexame do galanteador é, pelo contrário, usado na cantiga com uma função exemplar, para comprovar que o erotismo e a devoção são incompatíveis, salvo para quem, como Afonso, pratica igualmente ambas as coisas, com feliz incoerência. O que não terá escapado é, de qualquer modo, o indubitável valor narrativo dos textos examinados, tanto o das cantigas devotas como o da satírica. Se se reconhece a importância da função narrativa nas Cantigas de Santa Maria (fê-lo recentemente Marsan, dedicando um largo espaço a estas composições), o mesmo deve ser feito, porém, com as numerosas cantigas de maldizer e d’escarnho, que nos oferecem originais formas de conto. Muitas vezes, com efeito, estes textos baseiam-se em verdadeiros episódios anedóticos ou factos de crónica miúda, narrados de maneira directa e com singela mas expressiva brevidade. Começam com uma descrição e concluem com um escárneo, um dito de espírito ou um compasso pungente e lascivo. Trata-se, pois, duma forma intermédia entre o clássico epigrama e o género literário da facécia humanística, em que o tempo narrativo (o presente, adoptado para sublinhar a novidade do facto narrado; o imperfeito, para marcar a continuidade sob o aspecto da duração) assume grande relevo, juntamente com os jogos onomásticos e geralmente verbais. É uma forma tipicamente ibérica, sobretudo se pensarmos em Marcial, cujos epigramas apresentam significativas analogias com esses textos (multiplicidade dos motivos líricos, mas presença forte do conto; grande variedade de formas e de metros; amplificatio que culmina no exploit da conclusão, etc.).
Experimentemos ler, por exemplo, a descrição das desventuras duma viagem de Ayras Nunes, o clérigo cortesão de Sancho IV. O início exprime magistralmente a atmosfera de medo que antecede um acontecimento infausto:

O meu senhor, o bispo, na Redondela, un dia,
de noite, con gran medo de desonra, fogia…

O pobre clérigo vê-se deste modo obrigado, embora contrariadamente, a seguir o seu protector, suportando as desastrosas consequências do mau encontro que o espera pontualmente na noite. Os malandrins começam por aliviar o poeta da sua mula:

achei ũa companha assaz brava e crua,
que me deceron logo de cima da mia mua…

E tendo-o despido, deixam-no nu no meio da rua:

Ali me desbullaron do tabarro e dos panos
e non ouveron vergonha dos meus cabelos canos,
nen me deron por ende graãs nen adianos;
leixaron-me qual fui nado no meio de la rua.

Atenção, porém: a referência ritual de Ayras Nunes aos seus cabelos brancos é polivalente e, pela insistente autocomiseração, claramente dirigida no sentido de obter uma compensação, que extravasa os limites da sátira. Ao ver-se nu e descomposto na rua, o poeta não consegue evitar um riso irónico; e um rapazola tinhoso que assistira à cena injuria-o chamando-lhe velho maricas!

E un rapaz tinhoso, que o Deus poren [ d ]estrua!
chamava-mi Mia nona, velha fududancua!

Confrontemos a cantiga com um trecho duma novela do Decameron que descreve uma aventura análoga: … Estes três, vendo a hora tardia e o lugar ermo e fechado, assaltaram-no e roubaram-no, deixando-o a pé em camisa, e dizendo ao partir: Vai e vê se o teu S. Julião te dá esta noite uma boa hospedaria, que o nosso bem no-la dará…. Em ambos os textos estão presentes os mesmos elementos fabulares (a hora tardia que surpreende o herói em viagem; o encontro com os malfeitores; a situação ridícula do protagonista, abandonado nu no meio da rua; as palavras de escárneo dos bandidos); mas, enquanto o novelista se serve destes elementos para introduzir a verdadeira história que é a do perfeito acolhimento, completo em todos os aspectos, que Rinaldo recebeu graças ao seu pai-nosso em honra de S. Julião, na cantiga a fábula conclui-se aqui. A bela sentença, que é um elemento subsidiário na novela, torna-se assim a finalidade da anedota, toda ela construída em função do remate. Não se pode negar, porém, que a cantiga nos oferece um autêntico conto, à altura, por exemplo, duma pequena novela de Sacchetti ou duma facécia de Poggio Bracciolini.
E não faltam nas cantigas os trechos em que os poetas afirmam explicitamente a sua intenção de contar. Assim acontece por exemplo com Pero da Ponte, D’un tal ricome vos quero contar…, com Joan Vásquez, Direi-vos ora que oí dizer…, ou com Joan Lobeira quando, retomando com elegância o velho tema do mundo virado às avessas, nos fala dum cavaleiro todo ao contrário: Um cavaleiro á qui tal entendença / qual vos eu agora quero contar…, enquanto num contexto semelhante Martin Moxa adopta o verbo novelar». In Luciano Rossi, A Literatura Novelística na Idade Média Portuguesa, Instituto de Cultura Portuguesa, CV Camões, Instituto Camões, volume 38, série Literatura, 1979.

Cortesia de Instituto Camões/JDACT