sexta-feira, 12 de junho de 2015

O Último Conjurado. Isabel Ricardo. «Agora, se não desse muito trabalho a vossa mercê, gostaria de vos aliviar dessa bolsa que aí tendes à cintura; presumo ter sido resultado de mais um imposto mirabolante arrancado aos meus amigos...»

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«Maldito seja o cardeal que não apontou sucessor, deixando, assim, Portugal envolto em lágrimas e dor»

«(…) Entretanto, os soldados continuavam a revistar as casas, atirando com tudo o que encontravam para a rua, tal era a raiva por não acharem quem procuravam com tanto ardor. De repente, ouviram-se os cascos de um cavalo no empedrado da rua. Os soldados não prestaram atenção e continuaram a espreitar Por todos os cantos capazes de esconder uma pessoa. Uma rapariguinha voltou-se para trás ao mesmo tempo que uma velhota e quando a primeira se preparava para soltar um grito de entusiasmo, a segunda tapou-lhe a boca, também ela com um grande sorriso na boca desdentada. Ei! Ei! De quem é que andam à procura? Não é de mim, com certeza!, gritou uma voz insolente, seguida de uma gargalhada trocista. A sua voz era grave e bem timbrada. Os soldados voltaram-se, dando de caras com a descarada personagem que tanto procuravam. O capitão Gualdim, como ele próprio se intitulava, era delgado e não muito alto. Aparentava ser bastante jovem, talvez na casa dos vinte anos, impetuosos e provocadores. Vestia com elegância um fato de veludo negro, cujas golas arrendadas brancas caíam sobre o peito. Uma magnífica espada, de copos de ferro artisticamente trabalhados, pendia-lhe do boldrié de veludo bordado a ouro. Sobre o lado esquerdo do peito brilhava uma cruz de ouro com o brasão português e as quinas estavam representadas por pedras preciosas. As mãos cobertas com luvas pretas e os punhos brancos da camisa surgiam cheios de renda, como era costume naquela época. Na cabeça tapada totalmente por uma máscara da cor do fato, tinha um chapéu de feltro mole e de abas largas, somente adornado por uma bela pluma branca presa por um travessão de ouro.
O rosto, parcialmente coberto com a máscara, deixava ver o bigode muito fino e elegante, formando uma linha recta, sobre uma boca de linhas bem pronunciadas e de lábios vermelhos carnudos, que fariam inveja à mais bela mulher do reino. Pelos contornos da máscara notava-se um nariz bem feito e quem observasse com atenção veria uns olhos azuis, que naquela precisa altura tinham uma expressão trocista. A pele do rosto e do pescoço era branca. Nos pés, umas botas de couro macio, de canos largos e dobradas sobre os joelhos, a dar com o resto da roupa. Para completar a indumentária do estranho cavaleiro, uma capa de veludo, escura como a noite, pendia-lhe dos ombros, presa por alfinetes de ouro. Vinha montado num cavalo puro-sangue árabe, preto, de belo porte e maneiras majestosas. Cavaleiro e cavalo formavam um todo, tornando quase impossível imaginá-los separados um do outro. Agarrenlo! No lo dejen escapar, por vuestras vidas! Os soldados lançaram-se sobre ele, mas este desviou-se, com um sorriso impertinente, e desembainhou a espada. Esta brilhou, reflectindo um raio de Sol, encandeando o primeiro homem que lhe surgiu à frente. Aproveitando aquela vantagem, desferiu-lhe uma estocada a fundo no braço que pegava na espada, obrigando-o a largá-la. Em pouco mais de cinco minutos, já o excelente espadachim desarmara todos os soldados, ferindo-os superficialmente, singularmente no mesmo sítio: o braço que segurava a arma.
A gente que ali se juntara observava, entusiasmada, a valentia do cavaleiro, voltando-se para um lado e para o outro, como mil demónios, desferindo golpes a torto e a direito. O cavalo parecia adivinhar-lhe os pensamentos e os movimentos seguintes, pois dava voltas e caracoleios, infatigável, virando-se sempre no momento propício. Sanchez, assim se chamava o capitão espanhol, parecia soltar fogo pelas ventas. O rosto, habitualmente avermelhado, estava de um roxo que até metia impressão. Os lábios brancos de raiva davam-lhe um aspecto ainda mais estranho. Tentou pegar na espada caída no chão, mas de novo o mascarado lho impediu, ferindo-o no outro braço. Maldito! Un rayo le caiga en cima, insolente! Um sorriso irónico aflorou aos lábios de Gualdim, deixando ver uns dentes brancos. De uma maneira tão insolente como elegante, tirou o chapéu, cuja pluma quase varreu o chão. Às vossas ordens, capitão Sanchez. Espero que ainda voltemos a nos encontrar e desta vez com uma melhor disposição da vossa parte...
Agora, se não desse muito trabalho a vossa mercê, gostaria de vos aliviar dessa bolsa que aí tendes à cintura; presumo ter sido resultado de mais um imposto mirabolante arrancado aos meus amigos... O capitão estremeceu de fúria e, apesar dos ferimentos, tentou sacar a pistola. Rápido que nem um relâmpago, o mascarado tirou da bota um punhal de lâmina reluzente e lançou-o com uma firmeza assombrosa, indo espetar-se no braço direito do espanhol. Este empalideceu e levou a mão ao braço ferido, largando a pistola. Os dedos abriam-se dolorosamente, sem os conseguir controlar. Agora, se já vos fartastes de brincar Sanchez, agradecia que fizésseis o que vos pedi com todas as boas maneiras que me ensinaram...» In Isabel Ricardo, O Último Conjurado, Saída de Emergência, 2014, ISBN 978-989-637-676-5.

Cortesia de SEmergência/JDACT