sexta-feira, 26 de junho de 2015

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «O que sou eu?, pergunta feita de súbito, desgarrada, impertinente. Contrariado, Duarte fixou o irmão, sem ter na voz uma resposta acabada para lhe dar. O que sois vós, como?, pergunta retribuída com sinceridade»

jdact e wikipedia

Um irmão mal sintonizado
«(…) Entre a possibilidade de uma chalaça ou de uma crítica escondida, o infante Fernando sentiu-se desconfortável. Nem era porque o irmão fosse desconcertante ou que tivesse sequer sentido de humor. Não, nada disso! A sensibilidade da missão que o trazia ali é que o tornava inseguro. Por isso, quis responder, mas a resposta não lhe saiu espontânea e não esteve para rebuscar palavras que o atrapalhariam mais. Sem Duarte I ainda saber, o tema da conversa, que Fernando quer rodear de toda a formalidade, vai no sentido de propor a sua saída do reino em busca de glória e do pecúlio que parece não conseguir gerar em Portugal. Sente-se mal aproveitado, quer sair do reino para dar ao seu nome e à sua Casa a importância que em Portugal não obtém. Isto é o que vai dizer ao rei, embora, por enquanto, lhe omita o verdadeiro motivo da sua presença ali. Embaraçado, hirto, num plano inferior relativamente à posição sentada do monarca, o infante Fernando comprime-se. Não era para menos. Ao esconder o que não queria dizer, omitia a verdade, uma forma próxima da mentira, coisa que se pensasse bem não faria, pois, nessa hora ou em qualquer lugar, Deus estaria de olho nele.
Bom observador, o rei apercebe-se incomodado da descomposta figura do infante, despertando nele um esforço maior para decifrar a mensagem para além do que parece. Mau sinal, pensou o rei, desconfiado. Duarte começava a preparar-se para qualquer eventualidade, mas a questão que o irmão lhe pôs, quase uma provocação, apanhou-o desprevenido. O que sou eu?, pergunta feita de súbito, desgarrada, impertinente. Contrariado, Duarte fixou o irmão, sem ter na voz uma resposta acabada para lhe dar. O que sois vós, como?, pergunta retribuída com sinceridade.
O rei, afastado do que o irmão queria que ele soubesse responder-lhe, entendia que ao devolver-lhe a pergunta invertia o constrangimento que esta lhe causou, além de passar para Fernando a difícil tarefa de se explicar. Senhor, ficai sabendo, que nunca no meu pensamento existirão palavras espúrias que de algum modo vos façam sofrer, volveu Fernando, com uma dureza pouco consentânea com o seu modo sensível. Ao revelar-vos as minhas intenções, estou ciente da vossa compreensão para com o homem que se sente privilegiado por ser vosso irmão, mas, diminuído pelas circunstâncias, também percebe que é o mais infeliz dos príncipes.
- Antes de prosseguirdes, sabei já que a vossa conversa me contraria avantajadamente. Se persistis em substituir no vosso discurso as palavras por imagens, sabei que o meu coração se comprime a cada verbo que pronunciais. Sem ter por enquanto uma solução à vista, Duarte, numa manobra que pretendia fazer precipitar as palavras do irmão, disse-lhe: prossegui então, porque para incompreensões já estou armado. Acusando o remoque, Fernando esperou algum tempo para voltar a dirigir o olhar ao irmão, procurando com manifesta dificuldade recompor-se do golpe recebido. As precedências tinham muito peso, e Fernando, por maioria de razão, apagava-se sempre que tinha de se confrontar com os irmãos mais velhos. Tinha razões para isso. O seu sentimento de inferioridade revelava-se complexo por não ser capaz de vencer a barreira da menoridade, manifestações que o levaram quase a claudicar perante a última tirada do irmão». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de CAutor/JDACT