sábado, 13 de junho de 2015

O Canto da Sereia. Nelson Motta. «Para mim, cada dia é um milagre..., eu vivo intensamente cada minuto..., se eu pudesse escolher, gostaria de morrer cantando, no carnaval, no meio do povo..., faz uma pequena pausa…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Um Noir Baiano
«(…) O vozerio foi aos poucos abafando-se, e se ouviam, cada vez mais altos, gritos, choros, rezas, muitas rezas, em várias fés. A polícia cercou o trio. O mar de gente abriu-se como o Mar Vermelho a Moisés para que passassem duas ambulâncias e vários carros de polícia com as luzes piscando e sirenes ligadas. Sereia chegou morta ao hospital. E o impossível aconteceu: o carnaval da Bahia parou. Os tambores, as guitarras e as vozes silenciaram nos trios e nas ruas. Ninguém sabia o que fazer nem para onde ir. A televisão transmitia ao vivo do Campo Grande e do Hospital Central, personalidades davam entrevistas chorando, artistas, políticos, desportistas, gente do povo, todos se sentiam atingidos, a alegria baiana sofria um rude golpe, no seu momento de maior brilho colectivo. O secretário de Segurança garantia que todas as saídas da cidade foram bloqueadas, que toda a área em volta do Campo Grande fora isolada, que os apartamentos próximos ao local do crime estavam sendo revistados e que todo o efectivo policial seria mobilizado na caça ao assassino, enquanto a cena fatal era apresentada na TV a cada minuto, em slow motion. Vista de helicóptero, a avenida Oceânica parecia um rio de gente, e os trios parados e silenciosos, ilhas de luz. Ao longo de quatro quilómetros, da Barra a Ondina, estacionados em intervalos de trezentos metros, os trios do Asa de Águia, da Timbalada de Carlinhos Brown, de Daniela Mercury, Margareth Menezes, Ivete Sangalo, Jammil e Uma Noites, Armandinho, Harmonia do Samba, de Gilberto Gil, com Caetano Veloso como convidado, e vários outros, imóveis e chocados, como todo mundo, esperavam. Nas ruas e nas calçadas, nos camarotes e na praia, lado a lado estranhos se davam as mãos, choravam, rezavam, se abraçavam, esperavam. Diante do imenso telão no Farol da Barra a multidão assistia à transmissão ao vivo na TV, com depoimentos de celebridades e autoridades, a cena fatal mais uma vez repetida. Muitos choravam, outros cobriam os olhos com as mãos, todos esperavam na cidade paralisada.
Terça-feira de carnaval, nove e meia da noite. Na unidade móvel da TV estacionada no Campo Grande, de onde estão sendo geradas as imagens da cobertura, eu via e revia a cena diversas vezes, em diversos ângulos, em slow motion, por gentileza do colega Jaime Nogueira, que foi meu editor no Diário e chefiava a reportagem da emissora. Em um dos monitores que mostravam diversos pontos da cidade entraram imagens geradas do Hospital Central. Seguranças abriram espaço para o presidente da câmara, o repórter da TV aproximou-se com o microfone, espremido por um batalhão de colegas e curiosos. O director da cobertura apertou um botão e as imagens do Hospital Central entraram ao ar em rede nacional. Ao mesmo tempo, apressados e nervosos, invadiram a unidade móvel o dono da emissora, Roberto Farah, e Tuta Tavares, com uma fita de vídeo na mão. Farah ordenou ao director que a colocasse no ar imediatamente depois da fala do presidente, Tuta daria o sinal.
No telão do Farol da Barra, diante de uma muralha de câmaras e gravadores, ao lado do presidente, com a voz embargada, o velho cacique falou: diante do impacto, da magnitude e da violência dessa tragédia, solidarizo-me com todos os brasileiros na dor por esta perda colossal que deixou a todos nós sem voz e sem acção. Como poucas pessoas no Brasil, essa jovem filha da Bahia soube dar alegria aos que choram e esperança aos que sofrem. A brutalidade da sua perda, que entristece e comove todo o país, atinge-me também pessoalmente, como um amigo que teve o privilégio de conviver com uma artista tão talentosa e uma personalidade tão original e exuberante ao longo de sua breve e luminosa carreira. Como um cometa de luz e de alegria ela passou pela Bahia, pelo Brasil e por nossas vidas e estará sempre presente em nossa memória e em nossos corações. E agora dirijo-me especialmente ao povo da Bahia e aos turistas que nos visitam, a todos que estão em nossas ruas, festejando pacificamente e agora sob o impacto desta emoção.
A imagem de helicóptero mostrava o rio de pessoa nas redondezas. Não cabe ao governo do Estado nem à Autarquia decidir o que cada um pode ou deve fazer neste momento de dor dentro desta festa de alegria e liberdade. A nós cabe garantir a paz, a segurança e a liberdade de todos, fazer respeitar a lei e a vontade popular. Com a luz da sua presença e a magia da sua voz, ninguém contribuiu mais para o brilho e o sucesso da nossa maior festa do que essa jovem artista que nos deixou. Ninguém melhor do que ela representa o povo que deu corpo e alma a essa manifestação máxima de nossa cultura e nossas tradições. A um sinal de Tuta o director apertou um botão e o rosto de Sereia, luminoso e sorridente, encheu o ecran, a multidão suspirou. E aplaudiu. Molhada de suor e eufórica depois da sua apresentação triunfal, Sereia dá uma risada melodiosa e responde a uma repórter, gritando no meio de aplausos ensurdecedores, ao sair ovacionada do palco do Festival de Verão do ano anterior. Para mim, cada dia é um milagre..., eu vivo intensamente cada minuto..., se eu pudesse escolher, gostaria de morrer cantando, no carnaval, no meio do povo..., faz uma pequena pausa, claro que não nos próximos noventa anos! E dá uma gargalhada. E não ia querer ver ninguém chorando, ia querer que todas as pessoas soubessem que fui muito feliz e que todos me amaram cantassem as minhas músicas, ia ser como se eu continuasse viva..., para sempre. A multidão emudeceu». In Nelson Motta, O Canto da Sereia, Um Noir Baiano, Editora Objectiva, 2002, ISBN 857-302-482-8.

Cortesia de Objectiva/JDACT