domingo, 14 de junho de 2015

A Leitura do Budismo na obra de Dalila Pereira Costa. Rui Lopo. «A saudade pode assim ser teologicamente considerada como uma via medial, via de salvação pelo conhecimento e ascese, (...) impregnação da terra pelo céu e do tempo pela eternidade…»

Cortesia de wikipedia

«(…) O presente estudo circunscreve-se à função que a referência budista desempenha na obra de Dalila que tem como tema e objectivo a apresentação de um pensamento original e próprio, de tipo especulativo e traços místicos sobre a Saudade. Como veremos, tal referência encontra-se marcada por ambiguidades e configura a construção de um neobudismo, isto é, o estabelecimento de uma atitude mental denominada como budismo, que é utilizada como contraponto daquilo que se quer afirmar. Esta atitude filosófica tem sido já denunciada por diversos intérpretes que alertam para o curioso facto de, no preciso momento histórico em que no Ocidente se começavam a conhecer, em círculos especializados de sábios e tradutores os primeiros textos budistas, alguns filósofos terem começado a delimitar e definir um neobudismo, de tipo niilista, que pouca relação tinha com esses textos ou com a própria realidade da prática budista oriental. Para Dalila Pereira da Costa, a saudade necessariamente subentende um núcleo perene, um eu incólume como Eu, que através de todas as suas metamorfoses atravessando tempo e espaço, as liga e ligando-as, mostra ou demonstra, e ainda justifica, como causa e efeito, a identidade desse eu vivente. Em trânsito sobre a terra. A autora confere assim ao Eu profundo um estatuto de essência, superando as contingências de um ser em trânsito. Radicalizando desde logo o seu discurso, a primeira atitude filosófica exterior à sua própria que a autora convoca é, como já vimos, justamente o budismo: A saudade será a mais potente força de oposição no Ocidente à descontinuidade budista do eu no Oriente. É só pela saudade que se poderá aceder a um eu perene e essencial, irredutível a todas as transformações por que passa o eu aparente que atravessa múltiplas condições e estados de ser e de consciência, a saudade seria assim uma força de vitória sobre o tempo, imagem humana da transformação derradeira na sua realidade vera: a eternidade. A saudade pode assim ser teologicamente considerada como uma via medial, via de salvação pelo conhecimento e ascese, (...) impregnação da terra pelo céu e do tempo pela eternidade, como união recíproca, na final identidade.
A autora denuncia que o existencialismo ocidental e o Budismo oriental convergiriam no niilismo, caracterizado pela angústia e desespero e por propor uma fuga perante a vida. A esta fuga opor-se-ia a acção saudosa que venceria tempo e espaço, o devir e o sofrimento que lhe é inerente, operando a superação e libertação do humano mediante uma assunpção mais completa da vida, do mundo e de si próprio: Só aqui na Terra, nesta orla atlântica da Península, a alma do homem teria assumido integralmente, e amoravelmente, o tempo, para o ultrapassar. A libertação seria possibilitada, propiciada e suscitada pela própria fidelidade à terra e sua paixão, pretensamente oposta à fuga mundi própria do niilismo budista. E Portugal, a cultura portuguesa e a proposta e experiência da Saudade seria talvez o ponto dialéctico de oposição e resolução, em união de complementaridade, de primeiro e último, do Oriente e do Ocidente, aqui achado e elevado na terra dos homens.
Dalila procura assim refutar o Budismo nos seus traços mais essenciais, isto é, reduzindo-o a características tão esquemáticas que o desfiguram até se tornar irreconhecível. Contudo, movida por um genuíno ecumenismo e ao valorizar a sabedoria portuguesa como um meio de libertação, estatui a saudade como um meio de libertação, a par das experiências espirituais orientais, valorizando-as assim indirectamente. Prosseguindo este desígnio, a autora utiliza até um vocabulário retirado dessas tradições com o objectivo expresso de destacar a original especificidade da Saudade, como que implicitamente pressupondo e declarando que o recurso às tradições orientais seja indispensável ao conhecimento aprofundado do que mais importaria na cultura portuguesa.
Este paradoxo ou ambiguidade é reforçado pelo reconhecimento de que há características na cultura portuguesa que se encontram em frontal oposição à tradição europeia. Ao discorrer sobre a saudade, Dalila define-a como uma das mais altas experiências espirituais dadas à humanidade, só que, diferentemente da mítica e da poética, acessível, enquanto via de salvamento a todo um povo, continuadamente ao longo de sua longa história. Todos os tipos de conhecimento espiritual seriam assim formas de prospecção e união com o divino, o transcendente e o mistério. A saudade seria assim um conhecimento que faz participar na realidade suprema. Essa participação é vivenciada como uma forma de alegria em toda a sua força de libertação, revelando que a verdadeira realidade do mundo é isenta de devir, mudança e sua dor, mas que persiste e subsiste dela incólume. A saudade é assim definida como um poder de revelação da eternidade. Dalila vê os textos portugueses impregnados de saudade como elementos não menosprezáveis do mais precioso património espiritual da humanidade, a par de outros documentos que dão conta de outras experiências espirituais libertadoras, em outras tradições, tempos históricos e localizações geográficas, testemunhos da vida imortal». In Rui Lopo, A leitura do Budismo na obra de Dalila Pereira da Costa, Estudos, Universidade de Lisboa, Associação Agostinho da Silva, Revista Lusófona de Ciência das Religiões, Ano VI, 2007.

Cortesia da ULisboa/JDACT