segunda-feira, 1 de junho de 2015

O Espião de João II de Portugal. Deana Barroqueiro. «Como assi?, pergunta Pêro, sem conseguir parar de comer os pinhões que parecem ajudar à prosa entre amigos, pois outros viajantes fazem o mesmo. Tanto Timoja como o corsário Raogi eram gentios nobres e ricos do reino de Decão…»

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O corsário de Malabar
«(…) Pêro maravilha-se com o modo de navegação dos mouros, capazes de percorrer distâncias longuíssimas naqueles zambucos, umas toscas embarcações, tão mal construídas que metem medo mesmo a um homem avezado ao perigo como ele. Para ocupar o espírito e não pensar nos riscos de naufrágio, vai tomando notas de tudo quanto vê, tal como Sua Alteza lhe ordenara ao enviá-lo em viagem de exploração e descoberta da derrota das especiarias. Tem como os demais passageiros o seu gasalhado por cima da cobertura de canas, onde comem e conversam uns com os outros, visto que pouco mais há a fazer além de contemplar as povoações que se estendem ao longo da costa, como Curiate ou Mangalor do reino de Guzarate. Já navegamos nesta jangada há quase duas semanas, suspira um enfadado mocetão, sentado ao lado do pai. Não tardo a dar em doido. Tem a cabeça rapada à navalha, com uma guedelha pequena no alto e o rosto sem barba, apenas com um fino bigode a cobrir-lhe o lábio. Veste uma cabaia de seda branca, panos roxos e um biruni ou capa de escarlata própria de gente de qualidade, porém, os sapatos de couro reforçado, pregados nas solas com muitos pregos, têm escudetes nos calcanhares a terminarem num bico de uma polegada para servir de espora, denunciam-no como comerciante ou criador de cavalos. Traz o tronco cingido por umas correias de couro, estreitas e dobradas, guarnecidas de ferro, de onde pende a espada com embutidos de prata no punho, caindo-lhe atravessada sobre a coxa. Pêro admira-lhe a lâmina de aceiro muito fino, com quatro palmos de comprido e gume muito afiado e sorri-lhe com agrado por ver que o moço quer conversar com ele.
Perdoa ao meu filho, por favor, amigo, acode o pai de imediato. Schaban, assi como muitos jovens destes novos tempos, esquece as regras da mais simples cortesia e perturba o recolhimento dos outros. O velho, de longa barba cor de cinza, traja ao modo dos mercadores ricos uma cabaia de seda e um katebi de veludo de mangas compridas, calça chinelas com as pontas rebitadas e traz na cabeça uma touca branca e um turbante, composto por um carapução alto, com doze voltas de tecido. Ambos têm rostos nobres e afáveis. Não tens de pedir desculpa, para mim tudo o que interrompa a mesmice da viagem é bem-vindo, diz-lhes com gentileza e apresenta-se: o meu nome é Ali Moumen e sou mercador de Al-Andalus. Eu sou Mir Bubaka, da Pérsia, criador de cavalos de raça, e este é o meu filho, como já percebeste, corresponde o velho levando a mão ao coração numa saudação de cortesia. Serve-te destes pistus, que são mui saborosos! Volvendo à razão da nossa prática, julgo que, para maior animação da sua vida enfadonha, Schaban anseia por um recontro com o pirata Timoja. Tudo é preferível a este marasmo, zomba o moço. Com um corsário ainda se pode lutar e vencer, agora com esta viagem... O escudeiro aceita por cortesia um pistu retirando-lhe o miolo, que mordisca desconfiado, para logo comer outro, deliciado com o sabor. Quem é esse Timoja? Decerto haveria naqueles mares tantos perigos como no Mediterrâneo ou no Atlântico e são essas as informações que ele vem buscar. No início da minha viagem, sofri um mau encontro com salteadores do deserto e não tenho grande vontade de repetir a graça no mar! Tens de me contar essa aventura, roga Schaban. O pai retoma a palavra: Timoja, ou Timoji, como também lhe chamam, é um dos maiores corsários da costa de Coromandel (costa que ia de Narsinga, Vijayanagara, até Bengala) e, apesar da vigilância exercida com os seus navios nos mares entre Adem e Malaca, o sultão do Guzarate não pode fazer nada contra as cidades de Baticalá, Barkur e Honor, no reino de Bisnagar que é isento (livre, independente), onde eles se refugiam após cada saque. - Não posso deixar de sentir uma grande admiração por ele, meu pai, o homem é um herói para os gentios!
Como assi?, pergunta Pêro, sem conseguir parar de comer os pinhões que parecem ajudar à prosa entre amigos, pois outros viajantes fazem o mesmo. Tanto Timoja como o corsário Raogi eram gentios nobres e ricos do reino de Decão ou Daquanil, conta Schaban com grande animação. Quando esse reino foi conquistado e sujeito ao poder do Islão, eles recusaram obediência ao estrangeiro e juraram dar luta sem tréguas a todas as embarcações de muçulmanos que cruzem as águas das costas de Coromandel às do Malabar. Junto com outros rebeldes, formaram duas esquadras com seis ou sete grandes navios de gente bem armada e lançaram-se no corso, convertendo-se no terror dos mares para o sultão do Guzarate. E têm feito grande razia nos nossos navios de mercadorias, exclama Mir Bubaka com azedume, mostrando não participar da admiração do filho. Deixam muita gente viva, coisa fora dos costumes dos corsários, reponta o moço. Porque vivem em Honor, favorecidos pelo senhor da terra que não quer desencadear a má vontade e represálias do sultão. Olha, estamos já nas águas de Tolinate. É a primeira província de Narsinga, o reino de Vijayanagara, mui rico em vilas e cidades, senhor de outros reinos como Baticalá, Bacanor e Bisnagar, onde há um boníssimo porto de mar». Deana Barroqueiro, O Espião de D. João II, na Demanda dos Segredos do Oriente e do Misterioso Reino do Preste João, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-8092-58-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT