segunda-feira, 15 de junho de 2015

Os Românticos. Crimes Imperfeitos. Álvaro Guerra. «Os republicanos chamaram-lhe República, os salazaristas mudaram-no para Central e os da revolução botaram-lhe o nome de 25 de Abril. Então não é que os das Finanças querem fazer-me industrial de hotelaria...»

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«Os românticos não viajam realmente para o passado, trazem o passado para o presente». In Eduardo Lourenço

«(…) Rubrico o fim da utopia. E poderia ter-lhe dito que, depois de cá estar há coisa de um milhão de anos, o homem é ainda um animal relativamente racional, a sua superioridade sobre as outras espécies dá-lhe a ilusão de ter o absoluto ao seu alcance. E podia ter acrescentado que essa convicção é um risco que oscila entre a criação e a destruição, e que as cíclicas buscas do absoluto desembocam na submissão à ordem, nova ou velha. Mas, em vez de tal discurso, puxo-a para mim, primeiro devagar, com firme brandura. Ela debate-se, o seu hálito morno pousando nas minhas pálpebras, grita a tua ordem! A tua ordem!, enquanto as minhas mãos se fecham sobre os seus pulsos e o peso dos seus seios cai lentamente sobre o meu peito. Agoniza no amor, gemendo prazeres nascidos numa antiga ansiedade, numa outra despedida repetida e sem fim. Saliva, suor, esperma, estamos a afogar-nos nos nossos líquidos murmurando palavras de outro tempo. No meio do fumo dos cigarros, na penumbra velando a nossa nudez, recordamos episódios de antigos combates, quando o inimigo era comum e o futuro nos defendia de tudo, até da realidade. Não é uma reconciliação. Nenhuma ordem nos serve, digo eu, maculando o silêncio onde repousam as nossas lembranças. E, no entanto, começamos a envelhecer.
Revejo outras simplicidades que não afrouxam os laços da juventude, mesmo quando marcam a irreversibilidade em imagens de melancólica limpidez... O cotovelo esquerdo está apoiado sobre a pedra do balcão e a mão vai coçando o rosto muito branco semeado de barba rala e áspera; depois, alisa meia dúzia de cabelos que lhe riscam a calva luzente, e o dedo indicador vem dar a volta ao pescoço, devagar, entre o colarinho e a pele, até parar atrás do lacinho preto pendurado sobre a maçã de adão. O outro braço cai ao longo do corpo e a mão direita, cortada a meio pela bainha do casaco branco e largueirão, pontua com gestos moles o monólogo. Deu o que tinha a dar, nem mais nem menos. O Castro, com as suas relações, bem podia arranjar-me comprador para isto. A revolução deu cabo do negócio. Mas quem tiver vontade e força para trabalhar encontra aqui enxada para cavar bom dinheiro. É derrubar este mono, e espalma a mão esquerda na pedra gasta. Instalar balcão frigorífico, desses com vidros e cromados, abrir montra naquela parede, rasgar as portas, estucar o tecto, rebocar as paredes, dar-lhes duas demãos de verde e começar a contar o pé de meia.
Estou cansado, Castro. Os meus pais fizeram-me ao mesmo tempo que o Café, em 1914. Nasci sete meses depois de lhe abrirem a porta. Já teve três nomes e nunca fomos nós que lhos demos. Os republicanos chamaram-lhe República, os salazaristas mudaram-no para Central e os da revolução botaram-lhe o nome de 25 de Abril. E não tarda nada vão querer trocar-lhe o nome outra vez. Quando voltar para a Galiza ainda hei-de arranjar paciência para abrir um café só para ter o gosto de o baptizar. Farto, Castro, farto de aturar os fregueses que me gastaram os pés e a paciência. O meu pai deixou cá os ossos, mas eram outros tempos, o ofício de comes e bebes era uma arte natural. Então não é que os das Finanças querem fazer-me industrial de hotelaria, lá porque avio de vez em quando umas bifanas e uns cachorros! Já o meu pai o fazia e todos o conheciam como o galego do Central. Industrial de hotelaria!...
António Maria muda o apoio do corpo do pé direito para o esquerdo, sublinha o enfastiamento passando, sem gana, o esfregão pelo mármore e resmunga uma resposta às boas-tardes do lavrador Luís Morais que vai amesandar-se num canto à espera do carioca de limão das cinco da tarde. Sorvo o resto da cerveja já tépida, vejo o galego a arrastar os pés deformados por décadas daquele mesa em mesa. E dou balanço ao futuro que a minha geração, a seu tempo, sonhou, debruçada naquelas mesas, ambicionando ultrapassar os triunfos dos conterrâneos, a cavalo na bicicleta incerta de Inocêncio Clemente, ciclista sofredor, dentro do traje de luces do promissor espada Galo, ao lado das plumas e missangas da vedeta Vera Rios, Marília para os íntimos e patrícios». In Álvaro Guerra, Crimes Imperfeitos, Edições o Jornal, colecção Dias de Prosa, 1990, Depósito legal nº 40709.

Cortesia OJornal/JDACT