terça-feira, 16 de junho de 2015

A Jangada de Pedra. José Saramago. «Joaquim Sassa correu praia acima, e a onda desfez-se na areia arrastando conchas, pinças de caranguejos, algas verdes, mas também as outras, as bodelhas, as sanguíneas, as laminárias. E uma pedra pequena, maneirinha…»

jdact e wikipedia

«A coragem que vence o medo tem mais elementos de grandeza que aquela que o não tem. Uma começa interiormente; outra é puramente exterior. A última faz frente ao perigo; a primeira faz frente, antes de tudo, ao próprio temor dentro da sua alma». In Fernando Pessoa

«(…) Por estes mesmos dias, talvez antes, talvez depois de ter Joana Carda riscado o chão com a vara de negrilho, andava um homem a passear na praia, era isto ao entardecer, quando o rumor das ondas mal se ouve, breve e contido como um suspiro sem causa, e esse homem, que mais tarde dirá chamar-se Joaquim Sassa, ia caminhando acima da linha da maré que distingue as areias secas da areia molhada, e de vez em quando baixava-se para apanhar uma concha, uma pinça de caranguejo, um fio de alga verde, não é raro gastar-nos assim o tempo, este passeante solitário se estava gastando assim. Como não levava bolsos nem saca para guardar os achados, devolvia à água os restos mortos quando tinha as mãos cheias deles, ao mar o que ao mar pertence, a terra que fique com a terra. Mas toda a regra leva as suas excepções, e uma pedra que adiante se via, fora do alcance das marés, levantou-a Joaquim Sassa, e era pesada, larga como um disco, irregular, fosse ela das outras, maneirinhas, de contorno liso, daquelas que cabem folgadas entre o polegar e o indicador, e Joaquim Sassa tê-la-ia atirado a rasar a água plana, para a ver saltar, puerilmente feliz com a própria destreza, e enfim mergulhar, já perdido o impulso, pedra que parecera ter o destino traçado, ressequida de sol, molhada só da chuva, e afinal mergulhando na escura profundidade para esperar um milhão de anos, até que este mar se evapore, ou recuando a faça regressar à terra por outro milhão de anos, dando ao tempo tempo de descer à praia outro Joaquim Sassa, que sem saber repetirá o gesto e o movimento, nenhum homem diga, Não farei, segura e firme não está nenhuma pedra.
Nos areais do sul, a esta hora tépida, há quem tome o último banho, nadar, brincar com uma bola, mergulhar sob as ondas, ou repouse vogando sobre um colchão de ar, ou, sentindo na pele a primeira aragem do entardecer, acomode o corpo para receber o afago derradeiro do sol que vai pousar-se no mar por um segundo, de todos o mais longo, porque o olhamos e ele se deixa olhar. Mas aqui, nesta praia do norte onde Joaquim Sassa segura uma pedra, tão pesada que já as mãos lhe cansam, o vento sopra frio e o sol mergulhou metade, nem gaivotas voam sobre as águas. Joaquim Sassa atirou a pedra, contava que ela caísse distante poucos passos, pouco mais que a seus pés, cada um de nós tem obrigação de conhecer as próprias forças, nem havia ali testemunhas que se rissem do frustrado discóbolo, ele é que estava preparado para rir-se de si mesmo, mas não veio a ser como cuidava, escura e pesada a pedra subiu ao ar, desceu e bateu na água de chapa, com o choque tomou a subir, em grande voo ou salto, e outra vez baixou, e subiu, enfim afundou-se ao largo, se a brancura que acabámos de ver, distante, não é só a franja de espuma de ter-se quebrado a vaga. Como foi isto, pensou perplexo Joaquim Sassa, como foi que eu, de tão poucas forças naturais, lancei tão longe pedra tão pesada, ao mar que já escurece, e não está aqui ninguém para dizer-me, Muito bem, Joaquim Sassa, sou tua testemunha para o livro Guiness dos recordes, um tal feito não pode ficar ignorado, pouca sorte, se eu for contar o que aconteceu chamam-me mentiroso. Uma onda muito alta veio do largo, espumejando e rebentando, afinal a pedra sempre caiu ao mar, este é o efeito conhecido desde os rios da infância de quem na infância teve rios, a ondulação concêntrica que as pedras atiradas causam.
Joaquim Sassa correu praia acima, e a onda desfez-se na areia arrastando conchas, pinças de caranguejos, algas verdes, mas também as outras, as bodelhas, as sanguíneas, as laminárias. E uma pedra pequena, maneirinha, dessas que cabem entre o polegar e o indicador, há quantos anos não veria ela a luz do sol. Dificílimo acto é o de escrever, responsabilidade das maiores, basta pensar no extenuante trabalho que será dispor
por ordem temporal os acontecimentos, primeiro este, depois aquele, ou, se tal mais convém às necessidades do efeito, o sucesso de hoje posto antes do episódio de ontem, e outras não menos arriscadas acrobacias, o passado como se tivesse sido agora, o presente como um contínuo sem princípio nem fim, mas, por muito que se esforcem os autores, uma habilidade não podem cometer, pôr por escrito, no mesmo tempo, dois casos no mesmo tempo acontecidos. Há quem julgue que a dificuldade fica resolvida dividindo a página em duas colunas, lado a lado, mas o ardil é ingénuo, porque primeiro se escreveu uma e só depois a outra, sem esquecer que o leitor terá de ler primeiro esta e depois aquela, ou vice-versa, quem está bem são os cantores de ópera, cada um com a sua parte nos concertantes, três quatro cinco seis entre tenores baixos sopranos e barítonos, todos a cantar palavras diferentes, por exemplo, o cínico escarnecendo, a ingénua suplicando, o galã tardo em acudir, ao espectador o que lhe interessa é a música, já o leitor não é assim, quer tudo explicado, sílaba por sílaba uma após outra, como aqui se mostram. Por isto é que, tendo-se falado primeiro de Joaquim Sassa, só agora se irá falar de Pedro Orce, quando lançar Joaquim uma pedra ao mar e levantar-se Pedro da cadeira foi tudo obra de um instante único, ainda que pelos relógios houvesse uma hora de diferença, é o resultado de estar este em Espanha e aquele em Portugal.
Sabido é que todo o efeito tem sua causa, e esta é uma universal verdade, porém, não é possível evitar alguns erros de juízo, ou de simples identificação, pois acontece considerarmos que este efeito provém daquela causa, quando afinal ela foi outra, muito fora do alcance do entendimento que temos e da ciência que julgávamos ter. Por exemplo, pareceu ficar demonstrado que se os cães de Cerbère ladraram foi porque Joana Carda riscou o chão com uma vara de negrilho, e contudo só uma criança muito crédula, se alguma sobrou dos dourados tempos da credulidade, ou inocente, se o santo nome de inocência assim pode ser jurado em vão, uma criança capaz de acreditar que, fechando a mão, guardou a luz do sol dentro dela, só essa criança acreditaria que fossem capazes de ladrar cães que antes nunca ladraram por razões que tanto são de ordem histórica como fisiológica». In José Saramago, A Jangada de Pedra, Editorial Caminho, 1986, 16ª Edição, Reunidos, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-21-0289-6.

Cortesia de Caminho/JDACT