sexta-feira, 26 de junho de 2015

Claustro do Silêncio. Prémio Vergílio Ferreira. Luís Rosa. «E o presente, nesta era de paixões incendiadas pela guerra de liberais e absolutistas, é o peso da exploração e dos impostos. Ela sabia bem aquela eloquente linguagem de silêncios. Os frades não falavam. Por palavras»

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O inglês
«(…) Amei-a desde que nasci. Etelvina Góis, filha de Angélica Góis. Crescemos juntos. Minha mãe era a mais bela serrana das terras agrestes de Molianos. Nunca soube quem era o meu pai. Dizem que morreu durante as Invasões Francesas, quando toda a região estava a ferro e fogo e os soldados do conde de Erlon violaram os túmulos de Pedro e de dona Inês à procura de ouro. Foi na terceira invasão. A do marechal Massena. Mas eu sei que não foi assim. A beleza de minha mãe foi a sua infelicidade. É-a quase sempre , a beleza da mulher. O abade era um homem político e mulherengo. A ligeireza da política e a dos amotes vadios são duas faces da mesma superficialidade. Ou vaidade. Todos os homens poderosos o são, vaidosos e superficiais, no julgamento dos outros, tidos como inferiores, por natureza. Dormes, frei João Chiqueda? Por que dizeis tão tarde aquilo que hei-de escrever de vossa memória, frei Elias? Há horas de safadeza e horas de grandeza. No mesmo homem. Somos um bocado disso tudo. O amor e o ódio, o bem e o mal, o infinito e a finitude. Para mim, a hora da Lua é a hora da memória. Mas todas as horas são boas e más para tudo. Faláveis de vossa mãe. Morreu de parto. Ou de desgosto. Ou de peçonha conveniente. Ou simplesmente porque era necessário que morresse. O modo é circunstância.
Que insinuais, frei Elias? Há pouco ouvi dizer a uma mulher do campo que aqui, na terra dos coutos de Alcobaça, todos somos filhos de frade. Tens razão. Ou porque o somos mesmo ou porque assumimos a suspeita. No fundo, com algum orgulho. Para dizer que não somos filhos de ninguém. Porque aqui o Mosteiro é tudo. O pai de todos. Foi ele que fez esta terra e a desbravou. Com mérito. E é ele que agora a explora, como senhorio perene, e com ódio de todos. Os povos esqueceram as origens e só lembram o presente. E o presente, nesta era de paixões incendiadas pela guerra de liberais e absolutistas, é o peso da exploração e dos impostos. O alijar da carga secular do senhorio. Cada época tem o seu tempo e o seu destempo. O Mosteiro morreu no dia em que passou a ser senhorio. Morre-se num momento ou numa agonia longa. No silêncio ou na orgia da opulência. Mas toda a instituição tem o fim marcado quando adulterou a sua razão de ser. Frei Elias fez uma pausa longa, banhada pela luz pálida, dourada, da Lua, que aflorava, enorme, por cima dos cumes da serra dos Candeeiros, alumiando os túmulos onde os dois frades haviam feito o seu refúgio. Quem vos criou, frei Elias? Terá sido o Mosteiro?
Não. Um mosteiro de homens não se dá bem com crianças. É um mundo seco de homens celibatários. Quando minha mãe morreu, uma boa alma a mando do celeireiro da granja do Cidral, ali à saída de Alcobaça para Valado de Frades, foi-me pôr à porta de Angélica Góis, que morava numa casa aconchegada, portas afora da cerca do convento. Angélica, quando me recolheu criança, alertada pelo choro, na noite que caíra há pouco, ainda viu uma sombra sumir-se nos arbustos. Ficara de atalaia, para se certificar de que o inocente era recolhido, cumprindo a recomendação do mandador, que bem sabia o que fazia e os cuidados que mandara ter no cumprimento da encomenda. Angélica benzeu-se sem saber que fazer, ela que tivera uma filha que ia nos dois anos, Etelvina, e toda a vida vivera solta, amiga de amorios e desvarios, mas pouco atreita a cuidados e maternidades. Olhou os panos que envolviam a criança de linho fino, alvo, de altar de missa, coisa santa, envolvendo aquele pobre de Cristo, abandonado ao mundo. E, fixando melhor através da surpresa e da estupefacção, notou aquela flor-de-lis bordada ao canto, do escudo do Mosteiro.
Caiu do pasmo de tal admiração. Grande mistério ali estava. Concentrou-se, como se tivesse decifrado um código, e adoptou a criança, ciente de que o tempo haveria de esclarecer o mistério e dar caminho seguro ao inocente, que, por certo, teria alguém a olhá-lo de longe, sempre ausente e sempre presente. Ela sabia bem aquela eloquente linguagem de silêncios. Os frades não falavam. Por palavras». In Luís Rosa, O Claustro do Silêncio, Editorial Presença, Lisboa, 2002, ISBN978-972-23-2902-6.

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