domingo, 19 de julho de 2015

A Ilha dos Jacintos Cortados. Cartas de amor com interpolações mágicas. Gonzalo Ballester. «… que, com os mesmos meios linguísticos, a narração, a descrição do fictício, é levada a cabo por processos substancialmente diferentes dos usados quando se narra, quando se descreve a verdade de um acontecimento»

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«(…) Decidi dizer-te, finalmente, que o presidente lhe mostraria, embora talvez também lha lesse, a carta dos colegas (de que soubéramos por uma confidência), e explicar-lhe-ia depois o apuro em que poria a Administração no caso de persistir na intenção de que o livro fosse publicado; ao ponto de, nesse caso, a Administração se reservar o direito de rever e considerar o contrato de trabalho que, desde há tantos anos, unia Claire à universidade: acordo de que as partes tinham tirado evidentes benefícios, ela de honra, ele de dinheiro. Isso quer dizer que o vão despedir? Provavelmente. Mas, porquê? O livro dele não é um grande livro? O mais importante dos livros de história escritos desde há séculos, aquele que descobre o que ninguém devia ter descoberto, o que a ninguém convém que se saiba. Mas, Napoleão existiu ou não existiu? Depois de lido o livro de Claire, acho que não. E então? Tu és, Ariadne, a aluna distinta da secção de História Contemporânea, a discípula amada em quem Alain Sidney, chamado Claire na intimidade, pôs todas as suas preferências, que não sei ainda se foram também as científicas ou só as eróticas; conheço também as dos outros colegas, todos teus admiradores segundo a mesma vacilante dicotomia; vejam só Ariadne, essa rapariga grega, que talento para a investigação, que finura de trabalho, a sua tese é um assombro de precisão e de ordem, tem umas lindas mamas! Sendo as coisas assim, estando como estavas a par do que Claire escrevera e da sua transcendência e risco, a que propósito vieram tais perguntas, e, sobretudo, aquele E então? proferido quase como um desafio? Mais do que eu, modesto profissional da História Literária, alcanças tu a importância daquilo que Claire defende (e havemos de ver depois que não é uma descoberta, ainda que não saibamos exactamente o que seja): Napoleão nunca existiu, foi uma mera invenção técnica para explicar acontecimentos inexplicáveis, toda a história do século XIX se torna inteligível graças a esta ficção. Ora toma lá! Se soubesses o que no meu país disseram, como foi recebida a notícia! Já não há Napoleão em Chamartín, nem vitória nacional sobre as tropas imperiais, e ao povo é-lhe arrebatada a glória das guerrilhas, graças à qual conseguiu aguentar um século de opressão sem que o orgulho popular sofresse, sem que os condenados à abjecção se sentissem abjectos: pois cada um deles, nos piores momentos, se tinha por um Juan Martín possível; pois tudo lhes fica agora reduzido a umas escaramuças com Dupont, com Murat, ou com Soult, exageradas na sua importância pela propaganda cortesã, que no mito do povo invencível achou pretexto para cem anos de conspirações, pronunciamentos e fraudes à democracia. Mas, e os Russos? Tenho agora mesmo em cima da mesa o New York Times desta manhã, e, quando chegares, hei-de mostrar-to: a Academia Soviética interroga-se a que extremos de demência chegam os intelectuais sob o capitalismo, sendo, como se vê que são, capazes de defender com todo o luxo de aparato científico e precisamente graças a ele, que o invasor da Rússia não é mais do que um nome de uma mentira. E Beressina? E o marechal Kutuzof? Por que é que Moscovo foi incendiada? Pois entre a Rússia e a minha pátria fica o resto da Europa, glorificada ou esmagada pelo Corso.
São muitos os interesses que se mantêm graças a Napoleão, muitas as realidades que nele se justificam e encontram nome, os palácios e as pontes de Paris!, para se poder receber e aceitar sem mais aquelas a afirmação de Claire! Não duvido que o livro se leia, acredito mesmo que sim, mas como um romance fascinante escrito por um inglês que ensina História na América do Norte. E escrito de que modo! Porque, evidentemente, Claire fá-lo maravilhosamente. Cork, o de Manchester, começa a sua recensão, que tenho aqui à mão, dizendo: também a mim, aos quinze anos, me ocorreu que Napoleão nunca tinha existido, que era um sonho de todos, apesar das provas em contrário, tão esmagadoras, que me chegaram depois, me terem feito renunciar a tão generosa ideia. Vê-la agora defendida pela mão e pelo engenho de alguém tão reputado como o professor Alain Sidney faz-me retroceder aos distantes anos adolescentes e ao deleite que me causava sempre a leitura de Alice no País das Maravilhas. Confesso que o fabuloso conto de Lewis Carroll já não me atrai tanto, talvez por os críticos, de tanto o manipularem, o terem estragado; mas talvez seja devido ao facto de o exercício científico, que se não me secou a fonte da imaginação, pelo menos canalizou-a.
É muito possível, pois, que o espírito com que enfrento a leitura do ingente livro de Sidney não seja o apropriado. Lastimo. O artigo de Cork é uma ave rara: rejeita a tese, mas admite a legitimidade da ideia e admira, ou diz admirar, os métodos postos em jogo, o aparato científico e, é claro, a sua prosa. Aqueles, porém, a quem a presença de Napoleão na história e em certos monumentos ainda erguidos ou francamente deitados for embaraçosa ou simplesmente intolerável, aqueles que apagariam de boa vontade os nomes de Austerlitz, Fontainebleau e Santa Helena da memória dos mapas, encontrarão uma especial satisfação, um deleite semelhante ao de quem remexe com o ferro no seio da ferida, nesta leitura, cujo efeito menos visível só pode ser definido com uma palavra francesa, soulagement. E todos recordaremos aqueles versos de um poeta espanhol pouco conhecido: ... Grande pena / que não seja verdade tanta beleza! Volto então àquela tarde, se bem que já no meu gabinete, e à angústia com que me perguntavas se o calhamaço de Claire seria um enorme disparate, a obra de um cérebro perturbado, se não mesmo a burla imponente que se gera na frustração. Fazia-me pena ver como perdias por momentos a confiança, já não naquele que tinha sido o teu professor, aquele que te dirigiu uma tese por todos louvada, mas acima de tudo em ti própria, na tua capacidade para discernir as provas e os raciocínios. A porta do gabinete de Claire fica perto da minha: sugeri-te que fosses à procura do texto com o objectivo de examinarmos conjuntamente algumas passagens discutidas, e o que encontraste foi um maço de provas, o capítulo em que se cotejam, não tanto no seu conteúdo como na sua escrita, certas páginas de Chateaubriand, de Metternich e de Vigny. Nas primeiras narra-se e qualifica-se a morte do duque de Enghien; pelas segundas conhecemos a entrevista de Dresden, quanto às do poeta romântico, imagina-se nelas o que aconteceu entre o Corso e o papa prisioneiro: são estas, precisamente, as que servem a Claire de fundamento para a exposição do seu ponto de partida metodológico, isto é, que, com os mesmos meios linguísticos, a narração, a descrição do fictício, é levada a cabo por processos substancialmente diferentes dos usados quando se narra, quando se descreve a verdade de um acontecimento». In Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados, Ediciones Destino, 1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com interpolações mágicas, Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.

Cortesia de Relógio d’Água/JDACT