segunda-feira, 27 de julho de 2015

O Livro Negro. Hilary Mantel. «Estes homens, os velhos e os novos, estão com o rei desde os seus levantares até aos seus deitares e em todas as suas horas privadas entre os dois. Estão com ele na casa de banho e quando lava os dentes…»

jdact

Londres e Kimbolton. Outono de 1535
«(…) Não, diz ele ao embaixador, não é Anne quem me preocupa; são os homens que colecciona à volta dela. A sua família: o pai, o conde de Wiltshire, que gosta de ser conhecido por monsenhor e o irmão George, lorde Rochford, que Henry nomeou para o rol da sua Câmara Privada. George é um dos membros mais recentes, porque Henry gosta de se restringir a homens a que está habituado, que eranl seus amigos quando era novo; de tempos a tempos o cardeal varria-os para fora, mas voltavam a infiltrar-se como água suja. Em tempos foram jovens de espírito, jovens cheios de élan. Passou um quarto de século e estão cinzentos ou a ficar carecas, flácidos ou pançudos, fracos das pernas ou com falta de alguns dedos, mas ainda arrogantes como sátrapas e com o requinte mental de um poste de portão. E agora há uma nova ninhada de cachorros, Weston e Rochford e outros da sua laia, que Henry foi buscar porque pensa que o mantêm jovem. Estes homens, os velhos e os novos, estão com o rei desde os seus levantares até aos seus deitares e em todas as suas horas privadas entre os dois. Estão com ele na casa de banho e quando lava os dentes e cospe para uma bacia de prata; esfregam-no com toalhas e apertam-lhe os cordões do gibão e dos calções; conhecem a sua pessoa, cada um dos seus sinais ou sardas, cada um dos pelos da sua barba e fazem o mapa das ilhas do seu suor quando vem do campo de ténis e arranca a sua camisa. Sabem mais do que deviam, tanto como a sua lavadeira e o seu médico e falam do que sabem; sabem quando visita a rainha para tentar enfiar um filho nela ou quando, numa sexta-feira (o dia em que nenhum cristão copula) sonha com uma mulher fantasma e mancha os lençóis. Vendem o seu conhecimento por um alto preço: querem que lhes façam favores, querem os seus desmandos ignorados, acham-se especiais e querem que todos tenhamos consciência disso. Desde que ascendeu no serviço de Henry, ele, Cromwell, tem tentado aplacá-los, lisonjeando-os, procurando sempre uma maneira agradável de trabalhar, um compromisso; mas às vezes, quando por uma hora lhe bloqueiam o acesso ao seu rei não conseguem disfarçar os seus largos sorrisos. Já fui provavelmente, pensa ele, tão longe como posso para os acomodar. Agora, têm de me acomodar a mim ou ser removidos.
As manhãs agora são gélidas e nuvens barrigudas flutuam atrás da comitiva real enquanto vagueiam através do Hampshire, o pó das estradas tornado lama em poucos dias. Henry está relutante em se apressar de volta ao trabalho; quem me dera que fosse sempre Agosto, diz. Estão a caminho de Farnham, um pequeno grupo de caçadores, quando chega a galope pela estrada um relatório: apareceram casos de peste na cidade. Henry, corajoso no campo de batalha, empalidece visivelmente e torce para trás a cabeça do seu cavalo: para onde? Qualquer sítio serve a não ser Farnham. Ele inclina-se para a frente na sela, tirando o chapéu ao mesmo tempo que fala ao rei. Podemos seguir antes do previsto para Basing House, deixai-me enviar um homem rápido para prevenir Paulet. Depois, para não o sobrecarregar, para Elvetham por um dia? Seymour está em casa e eu posso caçar provisões se ele não estiver fornecido». In Hilary Mantel, Bring Up the Bodies, 2012, O Livro Negro, Civilização Editora, Porto, 2013, ISBN 978-972-26-3594-3.

Cortesia de Civilização/JDACT