terça-feira, 21 de julho de 2015

Memórias de Agripina. Pierre Grimal. «A língua grega ainda não me era, de todo, compreensível, apesar de me ir habituando a ouvi-la à minha ama, que era grega. Caio, esse, estava encantado…»

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O Tempo de Meu Pai
«(…) Caio, no meio de tudo aquilo, ia e vinha, corria por todo o lado e tornava-se muito popular entre os soldados da escolta, colocava perguntas que por vezes faziam rir os homens mas que, também, lhe valiam longas respostas, que ele escutava com o ar mais sério e que retinha até à última palavra. Tinha seis anos, precisamente o dobro da minha idade. Parecia-me já terrivelmente idoso. E ele estava também convencido disso e dava-me uma lição a propósito de qualquer coisa. Explicava-me a razão de ser do que eu via e compreendo agora, depois de todos estes anos, a profunda influência que exerceu sobre mim. O seu maior sucesso foi no dia em que ele me mostrou Nicópolis, a Cidade da Vitória, em frente da qual se deu a batalha entre Augusto e António. Uma vez mais repetiu-me que o nosso bisavô Augusto, e mais ainda o nosso avô Agripa, tinham feito todos os possíveis para eliminar completamente o nosso outro bisavô. Isso parecia aos seus olhos algo da maior comicidade possível. De repente, começava a chorar, a gritar, e parava para me dizer a meia voz: … vês, é por António e, sem transição, rebentava a rir. Era por Augusto e Agripa! Tal comédia encantava-me, apesar de me fazer um pouco de medo. Eu dizia, vagamente, a mim própria, que as coisas eram ou tristes ou alegres, que não podiam ser simultaneamente razão para tristeza e razão para alegria. Ali, em frente da baía de Áccio, ao lado dos troféus erguidos por Augusto, para celebrar a derrota daquele que havia sido o esposo de Octávia, sua irmã tão amada segundo me dissera a minha mãe, eu não sabia mais o que pensar. Se se amava alguém, como se poderia querer fazer-lhe mal? Eu amava a minha mãe mais do que ninguém no mundo. Eu teria querido que ela nunca se sentisse mal. Eu não suportava pensar que ela pudesse sofrer. Ela sabia-o e esforçava-se Por sorrir, por me sorrir, mesmo quando alguma dor a impedia bruscamente de respirar. Sobretudo nesses momentos, para que eu não pudesse adivinhar o que ela sentia.
Apesar da sua fadiga, ela pareceu reanimar quando chegámos a Atenas. Essa foi uma entrada verdadeiramente triunfal, e digna dessa cidade, de que sempre me disseram que não existiam duas iguais. Acreditava nisso de bom grado, visto que era a pátria da minha mãe. Pensei, ingenuamente, que o meu pai só mostraria aos Atenienses em toda a sua glória, com uma escolta de soldados. Mas ele não fez nada disso. Apresentou-se de toga, e fez-se preceder por um único lictor. E nós seguimo-lo a pé. Para um romano, parecia que era demonstrar um orgulho insuportável entrar-se numa cidade aliada, fazendo-se transportar de carro ou mesmo de liteira. Isso humilha os habitantes. Eu não teria hesitado em humilhar os Atenienses, se isso dependesse apenas de mim, Para evitar que a minha mãe andasse aquele longo percurso a pé, por aquelas ruas tão estreitas e tortuosas. Quanto a Caio, manteve um ar sério, imperturbável, durante todo o trajecto, lançando olhares à direita e à esquerda, que denunciavam a sua curiosidade. Via-o abanar a cabeça quando passávamos por baixo de arcos improvisados, em que haviam sido penduradas inscrições que, naturalmente, eu não conseguia ler. Caio pretendia dar a impressão que as conseguia ler e compreender, o que, afinal, até era possível. Na verdade, eu preocupava-me muito pouco com tudo isso. A minha sandália, que era nova, magoava-me o pé. Cada passo me era doloroso. Mas eu estava perfeitamente consciente de que seria humilhante queixar-me, e mais ainda chorar. A minha honra de Romana, a honra da própria Roma estava em jogo. Aos três anos, eu já sabia que não se chora em frente dos Gregos!
Quando chegámos à casa que devia acolher-nos, durante a nossa estada na cidade, aguardava-nos uma delegação de magistrados. Vi um grupo de personagens austeras, que se inclinavam em conjunto perante o meu pai, o que os fazia parecer pássaros a debicar e nos tornava simpáticos. Eu gostava bastante de pássaros, sobretudo de pombas, que voavam bastante sobre o Palatino. Empoleiravam-se nos plátanos, nos loureiros, nos ciprestes e nos pinheiros dos jardins vizinhos e nos que rodeavam os templos. A princípio não se viam, mas de repente a folhagem parecia desfazer-se, com um grande barulho de asas, e um pombo descia perante mim. Eu deixava cair docemente, em frente dele, um punhado de trigo. Eu sabia por experiência, que um movimento demasiado brusco o faria voar, mas eles conheciam-me todos e não tinham medo, com a condição de que as normas entre nós fossem respeitadas. Ir-se-ia também dar aos homens que eu via ali algo para debicarem? Germânico disse-lhes algumas palavras que eu não entendi, e cada um respondeu com um discurso interminável, cheio de nomes próprios, que me eram totalmente desconhecidos. A língua grega ainda não me era, de todo, compreensível, apesar de me ir habituando a ouvi-la à minha ama, que era grega. Caio, esse, estava encantado». In Pierre Grimal, Memórias de Agripina, Lyon Edições, Romances Históricos, 2000, ISBN 972-8461-51-8.

Cortesia Lyon E./JDACT